Nas palavras de Rachel Carson (1907-1964): “Mesmo na vasta e misteriosa extensão do mar, somos trazidos de volta à verdade fundamental de que nada vive para si mesmo”.
A conhecida dinâmica específica do modo de produção capitalista, em sua íntima relação com a economia linear (extrair, produzir, consumir, descartar), centrada numa visão egoísta (pois privilegia a acumulação individual) e antropocêntrica, (uma vez que coloca o homem, animal pensante, como “senhor de tudo”, inclusive sobrepujando as leis da natureza), produziu um tipo de crescimento econômico dilapidador (chamemos, assim, de “economia destrutiva”, termo que vem da geografia alemã do século 17) dos sistemas ecológicos da Terra e da biodiversidade, e agressor em potencial dos principais serviços ecossistêmicos (água limpa, ar puro, regulação do clima, polinização das flores, semeação do solo, fotossíntese etc). O que poderia ser um crescimento agregador, não fosse à voracidade mercadológica dominante e impositiva, consubstanciou-se num tipo de economia que, via sistema de preços, acaba por transformar absolutamente tudo em mercadoria, até mesmo o abominável tráfico de pessoas e de órgãos humanos – crime que movimenta anualmente mais de 30 bilhões de dólares segundo a ONU.
Da tentativa de consolidar um modo global de produzir que não respeita limites, principalmente os ecológicos (matéria e energia), tem resultado, tout court, num intenso foco de tensão entre o sistema econômico (a tecnosfera, produção humana) e o sistema ecológico (a ecosfera, a natureza).
Não obstante, para validar a ordem que emana do mercado de consumo (teologia do mercado), sempre recomendando políticas de crescimento econômico exponencial, a preocupação em preservar o meio ambiente e a biodiversidade simplesmente é jogada para escanteio, relegada no mais das vezes à condição de insignificância. E tudo isso, quando visto em amplitude, resulta num quadro atual bastante assustador: um planeta doente, uma Terra cansada, uma economia global socialmente desequilibrada, um retrato ecológico desanimador expresso, entre outros, na morte de espécies (assombrosamente é sabido que uma espécie desaparece por dia), e, por último, mas não por fim, uma economia dilapidada do ponto de vista social com taxas de pobreza e miséria que não param de crescer mundo afora – até 2021, 150 milhões de pessoas devem cair na extrema pobreza devido à Covid-19, recessão, conflitos e mudanças climáticas; as economias de médio rendimento terão 82% dos novos pobres do mundo, conclui estudos divulgado pelo Banco Mundial.
O ponto de conflito aqui que precisa ser devidamente destacado é que o crescimento econômico exponencial – que não será conseguido – não resolve esse conjunto de problemas.
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O avanço econômico ininterrupto traz consigo um leque de muito mais desacertos e desequilíbrios, com destaque negativo para o descompasso ambiental, notadamente o excesso de dióxido de carbono (a cada minuto, 10 mil toneladas são lançadas na atmosfera), para citar apenas esse exemplo. Ocorre que o homem-econômico, para ter sua sede material saciada (pilar da ideia de modernidade, espécie de passaporte da civilização moderna), estreita sua relação com a natureza e, sem medir esforços, se entrega abertamente ao modo de consumo vigente nas economias avançadas. A configuração de mundo hoje, pensando na esfera do consumo global, é bem conhecida: 20% da população mundial do Norte global (a parte rica do mundo) consome 76% de toda a produção de riqueza mundial, ao passo que, do lado Sul do globo (a parte pobre), sobra apenas 24% da produção para ser “repartida” por 80% da população mundial.
O curioso é que, de um jeito ou de outro, procura-se ocultar a assertiva de que ao “alimentar” esse superconsumo (do Norte global) abastecido por uma superprodução de mercadorias artificiais (na maioria das vezes fúteis), contribui-se um tanto mais para o processo de esgotamento dos elementares serviços ecossistêmicos que, além de garantir a vida humana, ainda dá suporte à própria economia. Por isso, ousamos assim supor, Ban Ki-moon, então secretário-geral da ONU, durante o Fórum Econômico Mundial em Davos (em 2011) disparou em tom de alarde ao afirmar que esse “modelo” que acabamos de descrever, na verdade, é um verdadeiro “pacto de suicídio global”. De fato, parece mesmo que estamos todos propensos a esse “suicídio global” uma vez que, dentro da espaçonave Terra, como bem lembrou McLuhan, “somos todos pilotos e passageiros ao mesmo tempo, já que estamos inseridos na natureza”.
É importante destacar isso porque realça a interligação de todos com tudo. Fato concreto é que nada existe isoladamente, tudo está conectado com tudo. Sendo bem objetivo, precisamos de todos, inclusive para a tarefa maior de erguer um mundo melhor a partir de uma economia também melhor, por isso capaz de aumentar o bem-estar das pessoas, compondo assim, ao fim e ao cabo, uma melhora coletiva.
Nas palavras da iluminada Rachel Carson (1907-1964): “Mesmo na vasta e misteriosa extensão do mar, somos trazidos de volta à verdade fundamental de que nada vive para si mesmo”. Já na “poesia metafísica” de John Donne (1572-1631) é possível ler que “nenhum homem é uma ilha, isolado em si mesmo; todos são parte do continente, uma parte de um todo”.
Colocando todo esse rico assunto na primeira linha de debate, nosso sempre estimado Leonardo Boff assevera que “no universo e na natureza, em todas as circunstâncias, tudo tem a ver com tudo, afinal, somos todos feitos do mesmo pó cósmico que se originou com a explosão das grandes estrelas vermelhas”. Da terra tiramos nosso sustento e à terra devolvemos dejetos do processo produtivo (resíduo, poluição, matéria dissipada). É assim, tomando essa última colocação como ilustração, que age o sistema econômico global: usa e explora os limitados recursos naturais (input) e devolve lixo (output) à natureza.
Portanto, para fazer uso aqui de uma linguagem modesta, é preciso dizer às claras que, quanto mais crescimento (econômico), mais intensa é a agressão (ecológica). E assim, fato concreto, aumenta-se a tensão entre essas duas correntes, a econômica e a ecológica. Esse processo é tão agressivo que, de acordo com estudos recentes, 60% dos serviços ecossistêmicos estão degradados. Daí a ideia corrente de que crescer física e economicamente se converteu, desde há muito, em sinônimo de poluir (no sentido amplo do termo) assoberbadamente.
Dito de outra maneira: produzir é também sinônimo de destruir. Não existe “produção” sem “destruição”. Não por acaso, a etimologia da palavra “consumir” (a razão maior do processo produtivo) significa “destruir”.
Ocorre que as economias modernas, do jeito como hoje estão estruturadas, têm aperfeiçoado os mecanismos dessa “destruição”, o que implica no esgotamento em várias frentes do chamado patrimônio natural (biomassa das florestas, solo arável, disponibilidade de água etc).
Na Carta da Terra, um dos mais importantes e sérios documentos elaborados pela inteligência humana, lê-se que “os padrões dominantes de produção e consumo estão causando devastação ambiental, redução dos recursos e uma massiva extinção de espécies. Comunidades estão sendo arruinadas. Os benefícios do desenvolvimento não estão sendo divididos equitativamente e o fosso entre ricos e pobres está aumentando”.
Fazendo por fim uma espécie de rápido balanço geral, cabe dizer que no visor do “relógio econômico” os ponteiros marcam um crescimento destruidor da natureza. O momento, portanto, exige uma só saída: abandonar definitivamente esse modelo econômico que transformou tudo em mercadoria, antes que a bomba-relógio acabe conosco.