"Vendo caro a minha derrota. Elas que lutem, meu campeão. Até então, ninguém me para. Sou um trem sem freio", disse a boxeadora Beatriz Ferreira, aos risos, em entrevista exclusiva ao Bahia Notícias. Atual campeã mundial do peso leve (até 60 quilos), Bia, como é conhecida, é uma das maiores chances de medalha do Brasil nos Jogos Olímpicos de Tóquio, marcados para começar no dia 23 de julho.
Praticamente imbatível, a soteropolitana de 28 anos subiu ao pódio em 27 das 28 competições que disputou. A exceção foi o Mundial de 2018, quando foi eliminada para a sul-coreana Oh Yeon-Ji na segunda rodada.
A única atleta que conseguiu derrotá-la duas vezes foi a finlandesa Mira Potkonen. Bia conseguiu a revanche fevereiro deste ano, ao batê-la na final do Torneio de Strandja, na Bulgária, por decisão unânime dos juízes. De qualquer forma, a baiana garantiu que Mira não é "uma pedra no caminho" dela. "Continuei treinando e sabia que uma hora eu ia dar o troco, e bem dado. E foi o que aconteceu. Não tenho mágoa. Todas do meu peso são adversárias, levo com a mesma seriedade e vontade de ganhar", destacou.
Após a liberação da volta dos torneios, paralisados por causa da pandemia de Covid-19, a boxeadora foi campeã de todas as competições. Além de Strandja, na Bulgária, ela levou o ouro no Torneio de Colônia, na Alemanha, e no Rio Grand Prix, etapa preparatória para os Jogos Olímpicos.
Sobre o isolamento, inclusive, Bia destacou que teve que ser firme para manter a forma física e cuidar da saúde mental. Ao Bahia Notícias, ela também falou sobre as dificuldades de ser mulher e lutar boxe, a falta de apoio e patrocínio da modalidade, sua relação com a Bahia e com Juiz de Fora (MG), cidade onde morou na maior parte da sua vida, e, por fim, sobre a importância do pai, Raimundo Ferreira, o "Sergipe", na evolução dela na modalidade. Confira a entrevista completa:
Bia, o boxe feminino demorou muito tempo para ganhar espaço aqui no Brasil. Como foi o processo de entender que você podia sim ser uma lutadora? De que boxe não era um esporte apenas para homens?
Eu nunca sequer tinha pensado que boxe era só para homem, ou que poderia ser. Conheci através do meu pai e, claro, via mais homens fazendo, mas eu era muito nova, era criança, então não tinha esse preconceito. Me apaixonei ainda criança. Sempre tive dificuldade de encontrar outras meninas para treinar comigo, mas sempre tive esperança de que isso um dia ia mudar, como vem mudando. [Espero] Que apareça mais nas mídias e em projetos sociais turmas de boxe para meninas, que incentive mais. Se acontecesse isso, teriam mais meninas no boxe, mais atletas. Eu fico muito contente de estar vendo que tenho visibilidade, vitórias, e assim acabo criando interesse nas meninas que queiram conhecer mais e se arrisquem a tentar o mundo da luta.
Você costuma falar muito sobre a relação com o seu pai, o Sergipe. Hoje, você está classificada para os Jogos Olímpicos e tem grandes chances de conquistar o ouro olímpico. Será que o pai está orgulhoso? E como você se sente dando um retorno tão grande para ele?
Meu pai é minha grande referência no boxe, meu grande incentivador. Meus pais, né, minha mãe também está nessa aí, sempre me apoiou. Os dois estão bem orgulhosos. Minha família está sempre mandando mensagem, me acompanhando. Eu fico muito feliz de ver meus tios, meu pai, minha mãe, minha irmã, torcendo e me acompanhando. Algumas pessoas tentam ficar ligadas para interagir comigo, e eu fico muito contente. Sempre quis isso, era uma meta. Fico com mais gás para alcançar as outras metas. Hoje, o boxe me proporciona ter uma vida diferente, ajudar meus pais. Eu quero poder dar tudo o que recebi em dobro para eles. Eu luto por eles.
Bia, você nasceu na Bahia mas foi criada em Juiz de Fora. Qual é a relação que você tem com essas duas terras? Qual é a importância de cada uma delas para que você tenha se tornado quem é hoje?
Nasci na Bahia, e com 13 anos fui para Juiz de Fora. Meu pai recebeu uma proposta de emprego e a gente mudou para lá. Terminei meus estudos em Juiz de Fora, fui bem acolhida, amo a Bahia, me sinto em casa todas as vezes que vou para lá. Hoje, minha mãe, minha família toda mora na Bahia. Só meu pai e minha irmã mais nova são de Juiz de Fora. Eu, atualmente, moro em Juiz de Fora. Fico em São Paulo, mas quando tenho folga vou para lá. Juiz de Fora me ajudou a terminar de me tornar quem eu sou hoje. Brinco que sou um pouco mineira. Foi no intuito de me dedicar ao boxe que eu cheguei a voltar para a Bahia [em Salvador], quando já tinha 18 anos. Fiquei uns meses lá, só que por ser uma cidade grande, por eu morar longe das academias, por ter um certo trabalho, eu preferi morar com meu pai, para ter essa facilidade de treinar. E acho que fiz a escolha certa. As duas cidades são muito importantes para mim, tenho amigos em ambas. Se eu fosse me descrever hoje eu teria que me dividir em duas.
Você é a atual campeã mundial, e venceu absolutamente tudo o que disputou nos últimos anos. Tem algum jeito de te parar, Bia? Qual é o seu segredo para ser tão vencedora?
Essa pergunta aí eu não tenho como te contar, não. É segredo, né (risos). Não, mas não tem como parar Bia Ferreira. Eu estipulei metas, e tenho sonhos. Para chegar onde eu cheguei, para eu ter conseguido minha vaga, ser uma atleta de alto rendimento, e estar na seleção, eu tive que abrir mão de bastante coisa. Então, pô, eu tenho que dar valor. É isso o que eu penso. É um dos motivos de eu ser vencedora. Tenho sempre um gás a mais. Não posso ter deixado de morar com minha mãe, de estar com minha família, para desistir fácil. Vendo caro a minha derrota. Elas que lutem, meu campeão. Até então, ninguém me para. Sou um trem sem freio (risos).
Mira Potkonen, da Finlândia, foi a única a te derrotar duas vezes. No início desse ano, porém, você venceu ela no torneio de Strandja, na Bulgária. Ela continua sendo sua maior “pedra no caminho” para conquistar o ouro em Tóquio?
Não levo ela como uma pedra [no caminho], não. Luta é luta. E na minha categoria tem muitas meninas boas, muitos países que temos que ficar de olho. Atletas diferenciadas, com estilos diferentes. Não tem essa, não. Se elas treinaram, eu também treinei, e lá a gente vai ver quem tem mais garra, quem é mais merecedora. A finlandesa não é uma pedra, não. Ela tava engasgada, sim, porque eu aceitei uma derrota. A primeira eu realmente tinha perdido, mas a segunda não me desceu. Não achei que tinha perdido aquele combate. Mas é aquilo: bola para frente. Continuei treinando e sabia que uma hora eu ia dar o troco, e bem dado. E foi o que aconteceu. Não tenho mágoa. Todas do meu peso são adversárias, levo com a mesma seriedade e vontade de ganhar.
Em 2020, os Jogos foram adiados por causa da pandemia. Houve um período muito intenso de isolamento social. Como você procurou manter a forma nesse período?
[O ano de] 2020 foi bem turbulento. A gente tinha uma base na Colômbia, estávamos nos preparando para o pré-olímpico, e falaram que tínhamos que ir para casa. Só que eu continuei treinando, porque meu pai é treinador. A CBBoxe mandava os treinos e fazíamos em casa. A maior dificuldade foi em questão de sparrings e lutas. Fiz com alguns amigos, que treinam boxe, mas, por conta da pandemia, evitei contato. Meu pai sobrou (risos). Acho que ele nunca treinou tanto depois que se aposentou. A gente mantinha um treino forte.
E como procurou cuidar da saúde mental?
A saúde mental foi o que eu aprendi mais durante a pandemia. Manter o controle dos nossos pensamentos e a nossa confiança. A gente tem acompanhamento de psicólogos, e era diária a conversa. Também a conversa com a família e com os amigos próximos, sempre trocava mensagens com os treinadores. Entre os atletas também, ficávamos um dando força para o outro, porque não teve um culpado. [Foi] Um vírus, e não tínhamos controle sobre aquilo, e tínhamos que nos manter confiante para que desse tudo certo. Não ia adiantar nada ser negativo no momento que você teria que ser mais positivo para sair dessa situação. Eu aprendi bastante e mantive sob controle. Claro que não o tempo todo, porque acredito que ninguém conseguiu. Mas, mesmo nos momentos de descontrole, consegui voltar e continuar com meu foco, imaginando que iria passar e eu teria que estar pronta. Hoje, me sinto pronta.
Se considera 100% pronta, fisicamente, psicologicamente e tecnicamente, para disputar a Olimpíada?
Sim. Estou pronta, claro. Não começamos a treinar ontem. Estamos treinando desde 2016, 2017, que foi o início do ciclo olímpico. Então temos que estar prontos. Estamos confiantes, e acredito que vamos trazer bastantes medalhas. Todo mundo sabe que fez de tudo para manter o treinamento de alto nível. Estou louca para chegar e buscar logo minha medalha, subir naquele pódio, ouvir o hino, prestar minha continência e gritar 'É da Bahia!' (risos).
Você tem 28 anos e já conquistou o Mundial, os Jogos Pan-Americanos e uma porrada de títulos no boxe olímpico. Caso conquiste uma medalha olímpica (espero que o ouro), pensa em partir para o boxe profissional?
Essa daí está sendo uma das perguntas mais feitas. Eu não sei, ainda. Meu objetivo é a medalha nos Jogos de Tóquio, e daí para frente vamos ver. Vou conversar com os treinadores, com a comissão, com o meu pai, e vamos ver a melhor solução e o que me faz feliz. Eu tenho que estar feliz para ter essas conquistas. No momento, eu vou para os Jogos e depois eu penso no que vou fazer.
A gente vê grandes boxeadores que trouxeram medalhas para o Brasil, como Esquiva Falcão e Adriana Araújo, tendo dificuldades nesse meio profissional para encontrar patrocínio. Como você enxerga essa realidade e o que precisa ser feito para que o boxe brasileiro, que traz tantas glórias ao Brasil, passe a ser mais valorizado?
Infelizmente, alguns atletas passaram por dificuldades. Mas é aquilo: eu acredito que isso vá mudar, que estamos tendo mais visibildade, estamos conquistando mais espaço. Só desejo que isso aconteça cada vez mais, e que nenhum outro atleta passe por essa dificuldade quando tiver parado de lutar o boxe olímpico ou tiver se aposentado. Graças a Deus eu consegui patrocínios, apoiadores. Sei que no boxe muitos atletas não têm. Mas é nunca desistir. Aos pouquinhos a gente vai chegar nos outros esportes, que têm mais apoiadores.
Houve muita discussão sobre a segurança na realização dos Jogos Olímpicos ainda em 2021. O Japão, país-sede, vive um momento político conturbado, com troca de presidente, e a maior parte da população é contra o evento. A vacinação também está lenta. Você se sente segura para ir aos Jogos, mesmo vacinada?
Pelo protocolo, por tudo o que a gente está tendo que fazer, por toda a burocracia que teremos de enfrentar, acredito que vai estar bem seguro. Os caras pensaram tudo direitinho. Aqui a gente tava correndo risco, também, acho que lá a gente vai estar até mais seguro.
Vocês estão fazendo testagem em massa para identificar a presença ou não do coronavírus. No entanto, terão que passar pelo aeroporto, pegar avião e a chance de contaminação sobe. Como você lida com a chance de não participar dos Jogos por, de repente, testar positivo menos de 10 dias antes? Está preparada para isso?
Não vai ser a primeira viagem desde que começou a pandemia. Já fizemos outras, já sabemos dos riscos, sabemos como fazer para evitar se contaminar, como é o protocolo de segurança. É continuar se cuidando, não pode deixar de se cuidar, quanto mais agora que está tão próximo. Eu nunca me contaminei, então acredito que o jeito que eu me cuido é certo. Quando chegar lá, vou fazer o que tem que ser feito. Se tiver que acontecer, vai acontecer. É rezar, continuar tomando os cuidados, fazendo os protocolos, que vai dar certo.
por Nuno Krause/Bahia Noticias/Foto: Rodolfo Vilela / Ministério da Cidadania