O Primeiro Cardiologista do Sertão


Armstrong e Dr.Plinio

Era uma noite de quarta-feira, antevéspera de Natal do ano zero da pandemia COVID-19. Eu tinha conseguido a oportunidade maravilhosa de entrevistar
Dr Plínio Augusto Viana Pereira, de 84 anos naquele momento, o primeiro Cardiologista do Sertão do São Francisco. Neste 14 de agosto, dia do Cardiologista, vale a pena relembrar o pioneirismo desse homem que fez parte da história de desenvolvimento do Vale do São Francisco.

Para mim, há muitos anos era imperativo que se tornasse possível entender a história da Cardiologia no nosso Sertão. Afinal, estamos todos nós cardiologistas sertanejos “nos ombros de gigantes”, vendo mais longe apoiados nas plataformas já prontas pelos nossos pioneiros na região, como certamente diria Isaac Newton. Como cardiologista em atividade no Vale do São Francisco, já me era muito conhecido de nome o pioneiro Dr. Plínio Viana, sempre muito elogiado por colegas e pacientes em suas habilidades técnicas e em sua ética e honradez. Haveria o dia em que esses mundos iriam se conectar, em que eu estaria diante desse grande profissional.


Por intermédio do colega cardiologista Dr. Edgar Damasceno, conheci finalmente Dr. Plínio na varanda da casa de sua família, sempre ao lado e com o apoio de sua eterna companheira, a Sra. Maria Lúcia Almeida Pereira, a calorosa Dona Lucinha. Um homem grandioso e generoso, Dr. Plínio e Dona Lucinha longamente conversaram comigo e, ao contar suas aventuras, iluminaram para mim um pouco da minha própria história. Vale a pena saber como as coisas se desenvolveram na vida do Dr. Plínio, um verdadeiro almanaque da formação da medicina sertaneja.


Assim como eu e muitos outros hoje orgulhosos médicos sertanejos, Dr. Plínio não nasceu em solo semiárido ribeirinho. Contou-me que era um jovem em Salvador quando começou a visitar familiares nas cercanias de Juazeiro (BA) e desde cedo se apaixonara pela região do Sertão do Vale do São Francisco. O Vale do São Francisco é uma região interessante, diversa e cosmopolita. Trazidas pela pujante agricultura irrigada, pela produção vinícola, pelas universidades, pelo polo médico avançado, não importa, o Vale do São Francisco acolhe bem as pessoas de fora e as integra rapidamente. Ainda jovem, Dr. Plínio viu o Rio São Francisco, molhou-se em suas águas e se apaixonou.


Ainda nos seus tenros anos de juventude, recebeu seu primo de Juazeiro (BA) para uma temporada na casa de seus pais em Salvador. O jovem Plínio era muito apegado ao primo, com quem se distraia em longas conversas certamente acompanhadas de um bom violão e muitas cantorias. Esse seu primo logo decidiu seguir de Salvador para o Rio de Janeiro, a fim de perseguir uma carreira artística. Pela proximidade que tinha com o jovem Plínio, insistiu para que o adolescente o acompanhasse para tentar a vida na então capital política e cultural do país. Quase que perdemos o Cardiologista pioneiro! Mas o jovem Plínio, balançado, recusou a oferta e seguiu
em Salvador para um dia desbravar a Cardiologia no nosso Sertão. Seu primo, o jovem João Gilberto, seguiu ao Rio de Janeiro para presentear o mundo com a nova batida da Bossa-nova. Não me canso de pensar como futuros tão distintos se cruzaram, provavelmente se influenciaram mutuamente, e seguiram seus caminhos transformadores.

Ao conhecer a História, é divertido notar alguns pontos em que nossas vidas se cruzam, embora separadas pelo tempo. Dr. Plínio formou-se médico pela Escola Bahiana de Medicina em 1964, mesma escola em que muitas décadas depois eu concluí meu Doutorado em Medicina e Saúde Humana. Dr. Plínio deixava as portas da Academia em momento turbulento da história brasileira, de grande instabilidade política, mas seguiu seu caminho inicialmente incerto sobre como gostaria de ter seu futuro na Medicina. Seguiu para atuar em pequenas cidades do interior da Bahia, a ganhar experiência e fazer algumas economias que ajudem nos anos incertos que surgem. Novamente me vejo em paralelo, médico recém-formado na Universidade Federal de Pernambuco, porém caminhando os primeiros anos perdido em relação ao caminho a ser seguido
profissionalmente. Em ambos os casos, esse tempo seria importante na decisão de se tornar Cardiologista.


A decisão de Dr. Plínio teve uma ajuda familiar. Um bom número de anos separa em idade e tempo de Medicina o Dr. Plínio e seu irmão mais velho, o
Dr Iulo Cesar Viana Pereira, já com mais de 90 anos no momento em que conversamos. Dr. Iulo havia concluído sua formação em Cardiologia na Espanha para se tornar um dos grandes nomes pioneiros na Cardiologia baiana, em um tempo em que a especialidade ainda engatinhava em terras tupiniquins. O próprio Dr. Iulo incentivou o irmão calouro a seguir seus passos na Cardiologia e formou, ao lado do cultuado Dr Pondé, o núcleo dos professores que guiariam Dr. Plínio na sua Especialização em Cardiologia na Universidade Federal da Bahia, ocorrida ao longo do ano 1966.

Foi em
1967, assim que concluiu sua formação em Cardiologia, que o Dr. Plínio seguiu para atuar no Vale do São Francisco, onde atuou como especialista até 2010. Interessante registrar que Dr. Plínio ao chegar na próspera região do Vale do São Francisco encontrou apenas oito outros médicos atuando na região. Pensar que hoje apenas na UNIVASF, são mais de 100 médicos formados todo ano em seus campi de Petrolina e Paulo Afonso. Na época foi acolhido pelo conhecido Dr. Washington Barros,médicoAnestesiologista também pioneiro, que faria anos depois a anestesia dos partos de Dona Lucinha, a querida e emblemática esposa do seu colega Cardiologista. Dr. Washington veio anos depois a dar nome ao Hospital de Urgências e Traumas de Petrolina, o qual viria a se tornar em Hospital Universitário da Universidade Federal do Vale do São Francisco, do qual já fui Diretor e hoje atuo como professor e médico.

Ainda em 1967, foi munido do estetoscópio apenas que Dr. Plínio começou a ouvir as histórias e os corações dos sertanejos. Mas isso conta apenas parte da avaliação do cardiologista. Como costumo dizer, o coração parece um carro, com uma parte elétrica e outra parte mecânica. Na época, pelas tecnologias então disponíveis no mundo, certamente estava Dr. Plínio ávido para reconhecer como estava a parte elétrica dos corações que atendia diariamente. Mas antes, ele precisou aguardar a chegada do seu aparelho de eletrocardiograma no ano seguinte, o primeiro a conhecer os corações sertanejos. Para isso adquiriu de forma pioneira um equipamento de

 

eletrocardiograma da marca Phillips, dando uma entrada e financiando em suaves prestações a outra parte. Afinal, investir em tecnologia era e continua sendo muito cara! O hoje tão popular ECG, disponível nos locais mais básicos de atendimento médico, na época precisou ser trazido da Holanda, uma das três máquinas trazidas ao Brasil. Imagino se os métodos de imagem que hoje faço no nosso Sertão - Ecocardiografia, Cintilografia, Ressonância e Tomografia também serão no futuro disponíveis em cada esquina...

Eu tenho o prazer e a honra de coordenar um projeto de saúde indígena com indígenas do Vale do São Francisco, o estudo PAI. Nesse projeto, dentre outros equipamentos, levamos ECG e ecocardiograma nas aldeias indígenas, sendo comum a surpresa das pessoas que se deparam pela primeira vez com esses equipamentos. Consigo até visualizar o assombro de toda uma população ao ser conectada por Dr. Plínio aos cabos e eletrodos nunca antes vistos, nos inúmeros casos de infarto do coração, arritmias e insuficiência cardíaca diagnosticados e tratados pelo pioneiro cardiologista e seu equipamento com tecnologia de ponta para a época.


Ele relembrou ao meu lado o episódio em que levou seu eletrocardiógrafo de avião ao interior do Piauí, em pistas semi-improvisadas, para prestar primeiros atendimentos a familiar de um colega médico com suspeita de infarto cardíaco. São as grandes responsabilidades de ser o único cardiologista, sendo que as causas cardiovasculares são a principal causa de mortalidade na nossa região. Para mim, foi muito bom ouvir de quem participou da evolução da Cardiologia como especialidade médica, os avanços nas medicações, nos equipamentos, nas condutas...


Durante cerca de 10 anos, Dr. Plínio foi o único Cardiologista da região. Seu prestígio era tamanho que não tardou a ser convidado para ser diretor do Hospital Dom Malan, que na época era o único grande hospital público da região. Dr. Plínio excedia sua ação como Cardiologista, estando sob sua responsabilidade o atendimento hospitalar de toda a nossa região.


O dia do Cardiologista, hoje, é um bom momento para relembrarmos nossa história e nos orgulharmos de até onde já chegamos no desenvolvimento da Medicina em nossa região. Não há figura melhor a ser homenageada como representante pioneiro que o querido Dr. Plínio Viana.


Naquele mesmo dia em que conversei pela primeira vez com Dr. Plínio, eu havia passado visita aos pacientes com doenças cardíacas junto ao grupo de médicos residentes em Cardiologia da UNIVASF. Importante ressaltar que a nossa UNIVASF em Petrolina (PE) e Juazeiro (BA) montou em 2013 o primeiro Programa de Residência Médica em Cardiologia no interior do Nordeste brasileiro. Nossa região forma cardiologistas de qualidade antes mesmo de algumas capitais do país. Mais que isso, hoje além da especialidade em Cardiologia, também formamos na UNIVASF subespecialistas em Ecocardiografia, Hemodinâmica e Cardiologia Intervencionista, Cardiologia Pediátrica e Ergometria. Também estamos envolvidos em projetos de pesquisa em cardiologia nos programas de Mestrado e Doutorado da UNIVASF e da UNEB. Há muito do que nos
orgulharmos, de fato. O Sertão evoluiu muito e com qualidade ao longo dos anos!


Lembro como se fosse hoje da primeira chegada dos Residentes logo após meu retorno dos dois anos em que estive na Universidade Johns Hopkins, nos EUA. Fiquei deslumbrado com a
qualidade e a determinação de nossos residentes sertanejos calouros, que desde muito cedo mostraram que nada deviam a nenhum outro de qualquer outro lugar, dos centros que conheço no Brasil aos grandes centros em que trabalhei dos EUA. Maior ainda o orgulho dos Cardiologistas que formamos até aqui por sua qualidade técnica e humana. Sem sombra de dúvidas, devemos ainda muitas reverências aos nossos pioneiros. Que se dedique esse nosso Dia do Cardiologista ao Dr. Plínio Viana, primeiro cardiologista do Sertão do São Francisco. Muito obrigado por ter pavimentado a estrada em que hoje todos nós caminhamos!

Por Anderson da Costa Armstrong, médico cardiologista, professor adjunto da UNIVASF, atual Diretor de Pesquisa e Vice-presidente eleito da Sociedade Brasileira de Cardiologia Regional Pernambuco


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