Família covid. Foi assim que Mariene Silva Moreno, 28 anos; o marido, Ricardo Bento da Silva, 31; e os filhos, Davi, de um mês; Pedro, de 3 anos; e Nicole, de 5, começaram a ser chamados e rotulados na vizinhança desde que a mulher contraiu o novo coronavírus. Mariene foi a primeira gestante com diagnóstico positivo para a covid-19 a dar à luz no Hospital Regional da Asa Norte (Hran). Há pouco mais de um mês em casa, após passar pelo difícil período de isolamento social, a família de Planaltina ainda é ameaçada pela invisibilidade da doença — mesmo depois de todos terem refeito os testes e de os resultados darem negativo.
“Até hoje passo por isso. Amigos que não querem pegar algo que estava na minha mão, porque dizem que está contaminada; pessoas dizendo que todos nós estamos com coronavírus. Ficam comentando e contando para os outros. Dentro da minha própria família, isso aconteceu. Gente que não quis conhecer o bebê, porque falou que ele estava infectado”, desabafa Mariene. Os impactos do preconceito e da estigmatização social são inúmeros — do psicológico ao financeiro.
Autônoma e revendedora de itens de beleza, a mulher relata que as vendas caíram muito, porque as clientes pensam que o vírus estará nos produtos. “Para algumas pessoas, eu tento explicar. Falo que refiz o teste, que deu negativo, que tomo todos os cuidados, assim como todos estão tomando. Mas tem muita gente que não entende. E as palavras de algumas pessoas doem, você observa que é por maldade”, conta.
Depois de enfrentar uma árdua e, muitas vezes, solitária batalha contra o vírus, essa é a realidade encontrada por pacientes recuperados da doença. Não à toa, entre os mais de 27 mil curados da covid-19 no DF, é difícil dar nome, rosto e personalidade aos números. “No começo, não queria falar com ninguém. Foi um processo doloroso. Primeiro, estava isolada em um período da maternidade no qual precisamos de ajuda. Não podia estar com o Davi, sentir o cheiro dele. Não podia estar com a minha família. E tinha sofrido no hospital, pensava que ia piorar a qualquer momento.”
E, quando parece que tudo isso foi superado, vem o preconceito. “Isso afeta, porque a gente precisa de apoio e não de crítica. Entendo o medo das pessoas, mas o vírus não dura para sempre, não vai ficar o resto da minha vida. É uma fase que termina, tem um ponto final”, argumenta Mariene. Apesar da dor e do sofrimento, é na companhia dos filhos e do marido que ela tem encontrado forças. “É por eles que não desanimo, e luto todos os dias.”
De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), a estigmatização social é a associação negativa entre uma pessoa ou um grupo de pessoas que compartilham certas características e uma doença específica. E se torna mais forte durante um surto ou uma pandemia. Isso pode significar que esses indivíduos são rotulados, estereotipados ou discriminados, recebem tratamento diferenciado ou experimentam uma perda de status devido à percepção de um vínculo entre eles e a doença. O tratamento negativo pode, ainda, afetar pessoas próximas, como cuidadores e familiares.}
Medo do desconhecido
Para a covid-19, a organização lançou, em março, um guia contra o estigma social (leia Para saber mais). Nele, a OMS pontua que o nível de estigmatização social associado à nova doença é baseado em três fatores principais: a covid-19 é uma enfermidade nova e, em grande parte, desconhecida; frequentemente, a sociedade tem medo do desconhecido; e é fácil associar o medo com “o outro”. “É compreensível que haja confusão, ansiedade e medo entre o público em geral. Infelizmente, esses fatores também estão alimentando estereótipos prejudiciais”, descreve o documento.
Na avaliação do psicólogo e logoterapeuta Sam Cyrous, é na sensação de medo que está a raiz do comportamento. “Quando não compreendemos algo, temos medo e, na natureza humana, a gente vê isso repetidas vezes. Os desafios que a covid traz são vários. Os cientistas estão aprendendo. As falas, como as da própria OMS, nem sempre são compreendidas corretamente, e a população observa tudo isso. O vírus é invisível. Graças a Deus, não tem uma estrela de Davi para colocar nas pessoas, como a Alemanha nazista fazia. Ele ataca qualquer um, a qualquer momento, de qualquer forma. O que chega a ser irônico, porque o novo coronavírus está nos ensinando que todos somos iguais. O vírus comprova que não há melhores ou piores, mas nós, seres humanos, por causa desse medo, reagimos de forma equivocada”, contextualiza.
Ao temer o desconhecido, nós colocamo-nos diante do estigma, da manifestação brutal contra uma pessoa recuperada da doença. Contudo, o psicólogo pondera que essa é uma situação conhecida, por exemplo, por diferentes gerações da população negra, desde que foi trazida para o Brasil. “Espero que a gente aprenda e rejeite esse comportamento de que é permitido estigmatizar. Na verdade, é um ato de coragem aceitar outra pessoa que é diferente de mim. Nós, seres humanos, temos a capacidade de pensar sobre as coisas e fazer deste momento um período de solidariedade, de aceitação, de cuidado, de acolhimento ao próximo. É importante perceber que a pessoa tem uma vida antes daquele encontro com o meu preconceito, com o meu medo”, avalia
Sobrecarga psicológica
Como se o resultado positivo para o exame já não envolvesse incertezas e angústias suficientes, o paciente ainda precisa enfrentar os olhares e tratamentos sociais atravessados. Assintomática, a relações-públicas Camila Rocha, 39, fez o teste no começo de junho, porque tinha marcado, mas não chegou a ter contato com pessoas contaminadas. “Na hora em que peguei o resultado, quase caí da cadeira. Nunca na minha cabeça pensei que daria positivo. Postei no grupo da família e minha mãe logo falou: não conta para ninguém, o que as pessoas vão achar? O que vão pensar?”, relembra.
Mesmo saudável, com um bom histórico, sem comorbidades, Camila pensou no pior. “Cheguei a telefonar para uma amiga médica e perguntar se tinha leito no hospital. A gente vê muita coisa ruim. E realmente tem. Então, mexe muito com o psicológico”, detalha. Durante o período de tratamento e de isolamento, a relações-públicas vivenciou constrangimentos e situações desagradáveis por conta do diagnóstico. “É muito triste”, descreve.
A impressão de Camila é que a sociedade passa a lhe vigiar, e você precisa prestar contas de tudo. Agora, mesmo recuperada, as preocupações não terminam. “Não sei se vou me contaminar de novo. Vai que, quando tem de novo, o contágio é pior? Enquanto não tiver nada para tratar, é óbvio que dá medo.” A sensação é compartilhada por Mariene, cujos últimos exames deram negativo: “Tenho muito medo mesmo. De pegar, de passar para os meus filhos. Limpo a casa com água sanitária, borrifamos álcool no ar, como se fosse um spray, limpamos as superfícies de três a quatro vezes”.
O clínico-geral e coordenador do pronto-socorro do Hospital Santa Lúcia, Luciano Lourenço, explica que a literatura mostra dois quadros diferentes de comportamento do novo coronavírus em relação ao ciclo de vida. “Pacientes que tiveram casos leves, que trataram sintomas leves, que não precisaram de internação hospitalar. Catorze dias após o início dos sintomas, esse indivíduo não tem mais carga viral capaz de contaminar outra pessoa. Há, também, os pacientes com quadro grave, que precisaram de internação hospitalar, por vezes, de ventilação ou intubação. Esses, a gente precisa de, pelo menos, 21 dias para que não seja mais capaz de infectar outro indivíduo”, detalha.
Tanto Lourenço quanto o psicólogo Cyrous elencam a informação correta como ferramenta fundamental contra o preconceito. “O que um paciente que foi infectado com uma carga grave mais precisa, depois de 21 dias de tratamento, é de carinho e de atenção. Além de não transmitir mais, ele não se infecta mais. Ele pode voltar às suas atividades de forma muito tranquila. Esse pânico que uma grande epidemia causa tem que ser desmanchado com informações corretas”, conclui o médico.
Ações educativas
Ainda assim, Elaine Bida, diretora de Serviços de Saúde Mental do GDF, percebe situações de pessoas se solidarizando. “Principalmente porque aqui muitas pessoas moram só, sem família ou com parentes em outras cidades. Esse é um lado positivo.” Para trabalhar com o estigma e outras questões relacionadas à covid-19, a Secretaria de Saúde do DF desenvolve ações educativas voltadas tanto para a população quanto para os profissionais. “Foram criados canais para minimizar, com esclarecimentos, tirando dúvidas, disponibilizando cursos, dicas de manejos e outras ações em psicoeducação. Temos, por exemplo, o canal Matriciamento e Por mais saúde mental, no YouTube, os quais tratam dessas questões”, exemplifica.
Para a diretora e também psiquiatra, cada um tem uma experiência que vivenciou e que se mistura com a estrutura psíquica, os mecanismos de defesa, que é muito individual. Já estamos isolados fisicamente, precisamos diminuir essa barreira do medo, pois, com apoio, seja de um profissional, seja de pessoas próximas, passar por esse momento se torna menos doloroso.”
- Quer ajudar?
Impactada pela pandemia do novo coronavírus, família de Mariene tem recebido auxílio. Para ajudá-los, ligue 9 8174-4951. - Para saber mais Guia contra o preconceito
O material A estigmatização social associada à covid-19. Guia para prevenir e abordar a estigmatização social foi desenvolvido pela OMS com a Cruz Vermelha e o Fundo das Nações Unidas para Infância. Nele, vários aspectos são elencados para lidar e tratar com o estigma, as palavras que usamos, as informações que disseminamos, entre outros. Confira alguns deles:
As repercussões da estigmatização social
» Ela pode minar a coesão social e levar ao isolamento social de grupos da população, o que poderia contribuir para aumentar a probabilidade de disseminação do vírus. Isso pode provocar problemas de saúde mais graves e dificuldades em controlar o surto da doença.
» Pode levar a pessoa a esconder a doença com medo da discriminação.
» Desencorajar a pessoa a procurar atendimento médico imediatamente.
» Desencorajar o indivíduo a adotar comportamentos saudáveis.
A abordagem da estigmatização social
Os dados demonstram claramente que a estigmatização e o medo em torno das enfermidades transmissíveis dificultam a resposta. O que funciona é reforçar a confiança nos serviços sanitários; demonstrar empatia com as pessoas infectadas; entender a doença e adotar medidas eficazes e práticas para que as pessoas possam contribuir para a sua segurança e a de seus entes queridos. A maneira como as informações sobre a covid são comunicadas é fundamental para ajudar as pessoas a adotarem medidas eficazes para ajudar a combater a doença e evitar alimentar o medo e o estigma. É preciso criar um ambiente no qual se possa discutir e abordar a doença e suas repercussões de maneira aberta, honesta e eficaz.
Quatro perguntas para
Jaqueline Brizola, doutoranda em estudos históricos da ciência, medicina e comunicação científica da Universidade de Valência e investigadora residente no Instituto de História da Medicina e da Ciência Lopez Piñero
Por que, em situações como a da pandemia do novo coronavírus, retorna a estigmatização social?Há muitos fatores: o medo, a ignorância dos meios de contágio e, sobretudo, o preconceito. Em outros eventos epidêmicos, ao longo da história, esse comportamento pode ser facilmente verificado. Diante da peste bubônica que assolou a Europa, no século 14, o célebre escritor Giovane Bocácio afirmou em seu livro Decameron que a doença havia começado no Oriente. Em sua visão, os culpados por tamanha tragédia não eram ocidentais nem, tampouco, os ratos europeus, que carregavam as pulgas transmissoras da doença. Nesse caso, os sujeitos que enfrentaram a grande peste não possuíam conhecimento sobre o agente etiológico, mas a ideia de encontrar os culpados permaneceu no imaginário de outros sujeitos, que enfrentaram outras enfermidades. No caso da varíola, que era endêmica no Brasil desde a chegada dos portugueses, no século 16, a cada brote epidêmico, os escravos, sobretudo aqueles recém-chegados da África, eram rapidamente responsabilizados. Mesmo após o fim do tráfico de escravos e da própria escravidão, autores brasileiros, como Otávio de Freitas, advogavam a tese de que os cativos foram responsáveis pela maioria das doenças que se desenvolveram no Brasil. Logicamente, essa premissa parte de um preconceito sistêmico contra os negros. Seus costumes e modos de vida foram considerados perniciosos à saúde por distintos agentes do poder ao longo do período republicano. Em cidades como o Rio de Janeiro, os cortiços, habitados em grande medida pelos descendentes dos escravos, eram vistos como focos de enfermidades, como demonstrou o historiador Sidney Chalhoub, em seu livro Cidade febril. Com o coronavírus e a crise que ele provoca, vemos mais uma vez a busca pelos culpados. Muitos se apressaram em apontar o dedo para os chineses, elaborando, inclusive, teorias conspiratórias de que a China lançou a doença para dominar o mundo, mas, se perguntarmos para esses mesmos sujeitos que elaboraram essas ideias, como o vírus atua e se propaga, certamente não saberão responder. Neste caso, falta informação e sobram ignorância e preconceito.
O impacto da estigmatização social pode ser maior do que o do próprio vírus a longo prazo?
Sem dúvidas. Os vírus que provocam as doenças levam mais ou menos tempo para serem combatidos, mas a tendência é de que sejam eliminados na maioria dos países, pelos cuidados higiênicos ou pela vacina, já o estigma permanece por décadas. Os países mais afetados, ou aquele em que, supostamente, começou a doença, tendem a ser malvistos, pois representam o perigo, além da memória de momentos difíceis. No caso da crise que vivemos, essa situação ainda é mais emblemática, pois, pela primeira vez, populações inteiras de alguns países foram submetidas à quarentena, como a Espanha. Depois de passar por um duro isolamento, é muito pouco provável que os governantes desse país, ou sua população, não vejam com bons olhos a entrada de estrangeiros que partam de lugares onde a doença está descontrolada. A tendência em muitos países europeus, neste momento, é proibir a entrada de brasileiros, por exemplo, pois as notícias que cruzam o oceano são aterrorizantes. O Brasil não está testando em massa nem realizou qualquer medida mais efetiva de isolamento e controle da doença — até outro dia, o presidente referia-se à pandemia como uma “gripezinha”. Evidentemente que esse comportamento gera desconfiança e medo. Neste caso, o estigma não ocorre em função da aparição da doença, mas pela negligência em relação aos seus efeitos. Todos os brasileiros, independentemente de estarem de acordo com a postura do presidente, serão vistos como “aqueles que não controlam a transmissão do coronavírus.” Os resultados disso são imprevisíveis.
Pelo que a senhora apresentou, o quadro não é novo. Por que não conseguimos mudar esse padrão? Há algo diferente da estigmatização social do novo coronavírus para o que foi identificado, por exemplo, no caso da varíola?
Cada situação histórica carrega sua peculiaridade. A varíola foi uma doença endêmica em todo o mundo. Como as pessoas desconheciam o agente etiológico e, em muitos casos, as formas de contágio, pode-se dizer que a doença fazia sua própria história. Já a covid-19 ocorre em outro cenário, completamente diferente. Hoje, sabemos exatamente como o vírus se propaga, temos tecnologia para fabricar uma vacina, e informações para nos mantermos minimamente seguros. O estigma em relação à varíola, no caso das epidemias que venho estudando, dava-se pelo preconceito com as populações mais pobres e vulneráveis e pelo racismo praticado contra os africanos e seus descendentes, que eram culpabilizados por supostamente virem de lugares onde a doença não dava tréguas, o que não correspondia à realidade. Hoje, sabemos que a varíola era recorrente na Europa até a introdução da vacina, entre o fim do século 18 e o início do 19, mas os europeus desembarcavam na América sem maiores problemas, não eram malvistos ou, pelo menos, não tanto quanto os africanos. A nova pandemia que vivemos em tempo real poderá gerar uma visão negativa das populações que vivem em países onde não há um controle efetivo da doença, como é o caso do Brasil.
Como enfrentar a estigmatização social?
Esse é um tema difícil porque envolve muitos fatores. Em primeiro lugar, há que se gerar conhecimento. É ilusório pensar que combateremos os problemas decorrentes de uma pandemia apenas produzindo uma vacina ou um remédio eficaz. Precisamos entender que nosso inimigo é o vírus e não as pessoas que padecem de enfermidades, mas, ao longo da história, temos visto que a atitude mais recorrente é afastar os indivíduos perigosos, isolá-los, estigmatizá-los. Esse comportamento em nada ajuda a enfrentarmos os graves problemas que decorrem dos eventos epidêmicos, porque geram medo e, claro, mais preconceito. Em segundo lugar, é preciso afastar a ideia dos “culpados”. Os micro-organismos existem na natureza e não escolhem um indivíduo preferencial ao se manifestar. O descontrole das doenças tem a ver com nosso modo de vida, com a forma despreocupada que encaramos a fome, a miséria, a falta de higiene e de recursos básicos nos países mais pobres, mas, enquanto não somos afetados, o problema é dos outros. Mais do que nunca, o coronavírus tem nos mostrado que os germes invisíveis matam os pobres, mas também fazem estragos consideráveis entre os ricos, que nossas atitudes de descaso com a saúde pública e com as péssimas condições de vida que muitas pessoas atravessam têm consequências para todos. Se, em vez de elegermos os culpados, pudéssemos buscar soluções para os reais problemas que levam ao desenvolvimento de pandemias, talvez pudéssemos garantir mais segurança em relação a esse tema. É preciso substituir o estigma pela solidariedade, pelo respeito ao próximo, pela garantia de direitos. Temos um longo caminho a percorrer.