Cidade governada por pai de Lira tem orçamento turbinado com emendas

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Nos manguezais das margens da lagoa do Roteiro, marisqueiros enfrentam a lama em busca de ostras, sururus, maçunins e caranguejos. Na volta para casa, em dias chuvosos, mais lama os esperam nas ruas sem calçamento do povoado Fazenda Palateia, em Barra de São Miguel (28 km de Maceió).

A falta de pavimentação, contudo, é o menor dos problemas na comunidade de cerca de mil habitantes que convive com casas de taipa feitas com madeira, barro e restos de lixo, onde a maioria das residências não tem saneamento básico e onde vivem famílias abaixo da linha da pobreza.

Em uma postagem nas suas redes sociais em novembro, o prefeito Benedito de Lira (PP), 79, prometeu mudar a realidade daquela comunidade: “Esse dinheiro está vindo para Barra de São Miguel através de uma emenda do deputado Arthur Lira, mudando a cara da Palateia”.

Com apenas 8.400 habitantes, Barra de São Miguel é um fenômeno. Recebeu R$ 4,7 milhões em 2021 e R$ 5,8 milhões em 2020 por meio das emendas de relator. É o município alagoano que mais recebeu recursos deste tipo de emenda proporcionalmente à sua população.

Não por acaso, a cidade é governada desde janeiro de 2021 pelo pai do deputado federal Arthur Lira (PP), presidente da Câmara dos Deputados e homem-chave na definição do destino das emendas.

As emendas de relator são peça-chave no jogo político em Brasília, pois são distribuídas por governistas em votações importantes no Congresso. O dinheiro disponível neste ano é de R$ 16,8 bilhões.

Desde o ano passado, o Palácio do Planalto e aliados usam os recursos de emendas de relator para privilegiar aliados políticos e ampliar a base de apoio deles no Legislativo. Não há uma base de dados pública com a lista de deputados e senadores beneficiados por essa negociação política.

A eleição de Lira para o comando da Câmara dos Deputados teve reflexo direto no volume de recursos destinados à Alagoas. Em 2020, foram empenhados R$ 285 milhões para o estado em emendas de relator e R$ 449 milhões em 2021 —número que ainda deve crescer até o fim do ano. Também em relação a Barra de São Miguel não há transparência sobre a indicação das emendas.

Em 2020, todas as emendas destinadas a Barra de São Miguel foram empenhadas em dezembro, quando Benedito de Lira já havia sido eleito prefeito da cidade após disputa contra Silas Albuquerque (PTB).

Ocupando sucessivos cargos legislativos desde 1966, incluindo um mandato de senador por Alagoas entre 2011 e 2019, Benedito de Lira perdeu a reeleição em 2018 após ser alvejado por denúncias na Operação Lava Jato.

Com o filho fortalecido no Congresso Nacional, decidiu coroar sua trajetória de 55 anos na política com o seu primeiro mandato executivo, concorrendo em Barra de São Miguel.

Até a eleição, Benedito de Lira não tinha residência no balneário turístico que fica ao sul de Maceió. Em 2020, pela primeira vez, declarou à Justiça Eleitoral uma casa e dois terrenos no município.

Na campanha eleitoral, prometeu usar da influência política do filho para transformar a cidade no maior balneário do Nordeste. Teve o apoio do então prefeito José Medeiros Nicolau, o Zezeco, que em agosto deste ano ganhou um cargo no Ministério do Turismo do governo Jair Bolsonaro (PL).

Desde o início da sua gestão, em janeiro, os recursos de emendas de relator turbinaram o orçamento da gestão Benedito de Lira. Os R$ 10,5 milhões empenhados para Barra de São Miguel nos últimos 12 meses equivalem a 20% de todo o orçamento anual do município, estimado em R$ 53 milhões.

O prefeito teve à disposição verbas para financiar a saúde, comprar um ônibus escolar, investir na construção de escolas e de quadras esportivas. Mas o grosso do dinheiro —cerca de 80% do total— foi empenhado para obras de drenagem e pavimentação em convênios com a Codevasf, órgão federal que tem como missão “desenvolver bacias hidrográficas de forma integrada e sustentável”.

A superintendência da Codevasf em Alagoas, com sede em Penedo (173 km de Maceió), é comandada por Joãozinho Pereira, líder de um dos principais clãs familiares do estado e primo de Arthur Lira.

A reportagem circulou pelo perímetro urbano de Barra de São Miguel e identificou obras inacabadas de calçamento em paralelepípedos no conjunto Barra 2.

As obras foram concluídas no trecho da rua que abriga a igreja de Nossa Senhora de Guadalupe, uma das principais da cidade. As ruas do entorno, contudo, seguem em terra batida.

“Aqui, quando chove, a água bate na nossa canela”, reclama Nelma Melo, 45. Empregada doméstica desempregada, ela divide a casa com dois filhos e com o marido, que não tem emprego formal e vive de biscates.

Moradores reclamam do ritmo lento das obras e o fato de não contemplarem todas as ruas do bairro: “Não avançam. Talvez quando chegar a eleição, no próximo ano, eles terminem”, reclama Nelma.

No povoado Fazenda Palateia, zona rural da cidade, as obras de pavimentação ainda não começaram. Os recursos foram empenhados em setembro e o convênio foi assinado em outubro com a Codevasf.

Na comunidade, o clima é de apreensão e de esperança com as obras que foram prometidas pela prefeitura para a comunidade, que por décadas esteve à margem dos investimentos municipais.

Presidente da Associação Paraíso das Ostras, José Antério da Silva Filho, 43, diz que a pavimentação pode ajudar a incrementar o turismo no povoado, que oferece atrações como passeios de barco e restaurantes com ostras como carro-chefe.

Por outro lado, diz que a principal demanda da comunidade é o saneamento básico: “Algumas casas têm fossa, mas precisa de mais. Até para a gente não deixar sujeira correr para os manguezais e para a lagoa, que é de onde a gente tira o nosso sustento”, afirma.

Mesmo sem o início das obras, a comunidade recebeu há cerca de um mês dezenas de caixas para criação de abelhas e produção de mel, que depois das ostras é a principal atividade econômica da comunidade. Os equipamentos foram cedidos pela Codevasf.

Em nota, o deputado federal Arthur Lira informou que “todos os recursos de emendas são indicados pelos deputados da bancada alagoana, com indicação de deputados de várias legendas, inclusive de oposição”.

Afirmou ainda que as emendas destinadas a Barra de São Miguel são “mais do que legítimas, com os recursos destinados a uma comunidade chamada Paleteia [sic], com mais de 200 famílias que moram em casa de taipa, de madeira, sem saneamento, sem água e que dificilmente têm acesso de melhoras sociais”.

Também destacou que as emendas são publicadas, roteirizadas e acompanhadas pelos órgãos de fiscalização. “Barra de São Miguel é polo turístico do Brasil e que tem essa enorme desigualdade, que está tendo melhorias. Não é escondido, não é secreto e é bom inclusive que vocês da imprensa deem visibilidade para tanta desigualdade”.

A Prefeitura de Barra de São Miguel informou que o convênio com a Codevasf para obras no Povoado Palateia tem como objeto a pavimentação e drenagem de vias e prazo de 36 meses. Sobre as obras de pavimentação já em curso, na zona urbana da cidade, informou que não houve contratempos no cronograma e que a obra só foi interrompida nos períodos chuvosos.

A Codevasf disse que a sua atuação está alinhada com seu propósito de promover o desenvolvimento integrado e sustentável de bacias hidrográficas alcançadas por sua área de abrangência.

Destacou ainda que “encaminhamentos relacionados à responsabilidade por indicações de recursos destinados à Codevasf são externos” ao órgão. E informou que provê informações técnicas aos autores de emendas ao Orçamento, com o objetivo de subsidiar as decisões.

João Pedro Pitombo/Mateus Vargas/Folhapress/Foto: Reprodução/Facebook

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