Araras-azuis eletrocutadas em postes. Justiça notificou a Coelba sobre as mortes mais recentes de araras

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Congeladas num freezer, em uma fazenda em Euclides da Cunha, no Norte da Bahia, três araras-azuis-de-lear aguardam um desfecho. Nos últimos dez dias do ano passado, elas caíram mortas do céu da Caatinga. Não foi lá o que se pode chamar de novidade na região, onde a morte de araras se torna cada dia mais frequente. Desde 2018, ao menos 31 delas morreram em condições semelhantes: próximas a postes de energia. 

A arara-azul-de-lear está ameaçada de extinção e só existe em 12 cidades baianas. As principais são Canudos, onde a maioria das araras-azuis dorme nas fendas de paredões, e Euclides da Cunha, onde passam a maior parte do dia em busca de frutos de palmeiras para alimentação, como o licuri.

“A gente já se reuniu com instituição, já falamos do problema, mas o problema não é resolvido”, conta Marlene Reis, 41 anos, proprietária da fazenda onde estão as três araras refrigeradas, guardadas num saco plástico, e membro do projeto Jardins da Arara de Lear.

Ela e o marido, o guia de expedições naturais Mário Reis, são duas das pessoas que, com ajuda das populações locais, recolhem araras mortas do chão. É um trabalho que se avoluma. 

O trio de araras mortas aguarda por técnicos do Instituto do Meio Ambiente e Recursos Hídricos (Inema), responsáveis por realizar a necropsia, o exame que determina a causa morte, nos animais. Até o fechamento da reportagem, a espera continuava, assim como o problema associado a choques de animais em postes de energia da Neoenergia Coelba. 

A morte das araras passou a espantar em 2018, ano em que sete delas foram encontradas sem vida, próximas a redes elétricas, em Euclides da Cunha. Desde 2018, foram 31 mortes associadas à eletroplessão. As mortes se concentram em quatro áreas rurais de Euclides, porque lá estão os principais pontos de alimentação das araras do amanhecer ao fim do dia.

“Eletroplessão” é o termo técnico dado à morte causada por uma descarga elétrica não intencional. Ela acontece se uma arara tocar, simultaneamente, em um fio energizado e outro não energizado ou com potência energética diferente. Dessa forma, as araras fecham o circuito de energia e são eletrocutadas – algo parecido ao que ocorre, por exemplo, quando, descalço, você toma um choque durante o banho.

Com a diminuição da cobertura de árvores nativas, fenômeno que não é exclusivo de lá, as redes de energia se tornam lugares de pouso das araras. 

“A eletroplessão era um evento muito mais raro, morria um em um ano, depois morria outro. Nunca tinha visto nada parecido”, conta a engenheira Kilma Manso, que acumula mais de duas décadas de observação, pois chegou à Bahia em 1998.

A situação das mortes chegou ao limite numa data que engenheira Kilma Manso lembra, porque foi marcante: 9 de junho de 2020. Desde então, o Ministério Público da Bahia (MP) abriu dois inquéritos civis para apurar as mortes.

Coordenadora da Organização para Conservação do Meio Ambiente, Manso recebera, por três dias seguidos, notícia de araras mortas sob fios, no Povoado das Baixas, em Euclides da Cunha. “Primeiro eu achei que era um problema específico de um poste. Mas aí chegaram os três casos, em três dias seguidos”.

Para Kilma, era impossível que tudo se tratasse de uma coincidência. Possível era que as mortes não parassem por ali. 

O problema pode ser resolvido com cinco mudanças, que incluem distanciamento dos fios dos postes e uso de cabeamento multiplexado (fios traçados e revestidos), segundo relatório técnico enviado ao MP. Mas as modificações não foram feitas, o que gera uma onda de mortes coletivas. 

A coletividade das mortes é tanto simbólica quanto literal. As araras azuis vivem um amor da monogamia. Se perdem seus companheiros ou companheiras, elas raramente voltam a participar do ciclo reprodutivo. Para uma espécie ameaçada de extinção e monogâmica, a morte de uma representa um declínio geral. 

Henrique Batalha, professor do Instituto de Biologia da Universidade Federal da Bahia (Ufba) e especialista em evolução de aves, ajuda a explicar o porquê de isso acontecer. As araras, não só as de-lear, costumam manter uma só companhia sexual. O casal estará junto para cuidar dos filhos, forragear e desbravar novos territórios.

“Alguns estudos genéticos já mostram que existe cópulas fora do casal, o que é uma forma de aumentar a variabilidade genética, mas, de modo geral, a monogamia se aplica”. 

A expansão dos ambientes urbanos sem considerar a vida desses animais, aliado a anos de tráfico ilegal, impactam no sumiço delas do céu. 

“Qual é a solução? Precisamos ter energia e as araras”, diz promotora

No centro da cidade de Euclides da Cunha, está a Praça Arara Azul-de-Lear. Por engano, a praça tinha sido nomeada Ararinha, em 2010, mas a comunidade local pediu a troca para a Prefeitura. A ararinha – aquela que aparece no filme Rio (2011) – é a outra espécie que existia em Curaçá, no cerrado baiano, mas foi extinta.

No Brasil, existem cinco espécies de araras podem ser encontradas na região amazônica, no Nordeste e nas regiões do Planalto Central.

“A gente procura falar arara-azul-de-lear sempre, para não confundir”, conta Marlene, a ativista que guarda as araras mortas congeladas. 

Há, entre Euclides, Canudos e Jeremoabo, uma rede articulada de defensores da arara-azul-de-lear. São eles quem recolhem as araras mortas e cobram uma solução. Os nativos são incentivados a comunicar as mortes e, aí, os registros só crescem.

Em fevereiro de 2020, Aliomar Almeida, coordenador do projeto Jardins da Arara de Lear, entrou, pela primeira vez, em contato com a Neoenergia Coelba. Via rede social, ele denunciou as mortes das araras sob postes. Reuniões foram marcadas, nada foi resolvido. 

“O que vemos é o agravamento da situação. Quando os procurei, tínhamos um número de aproximadamente dez araras mortas e hoje, dois anos depois, são quase quarenta”, diz Aliomar Almeida, coordenador do projeto Jardins da Arara de Lear.

O Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) reconhece a eletroplessão como um dos principais desafios à sobrevivência das araras no Norte da Bahia. 

O Ministério Público e a Coelba estão, neste momento, em discussão sobre a assinatura de um Termo de Ajuste de Condutas (TAC) para promover mudanças em postes.

“Qual é a solução? Precisamos ter energia e precisamos ter araras vivas. Nos reunimos com entidades ambientais que atuam no local para pensar as melhores soluções”, afirma Luciana Khoury, promotora do órgão.

Na última sexta-feira (7), o MP notificou a Coelba sobre as mortes mais recentes de araras. A área que precisaria de mudanças tem 18 mil quilômetros de extensão e inclui cinco cidades. “Eles [a Coelba] acham inviável. Então, vamos fazer mudanças para que, de início, a gente informe as áreas prioritárias, mais urgentes, onde as mudanças precisam acontecer”, diz Khoury. 

A Neoenergia Coelba informou à reportagem que mantém diálogo com o MP para contribuir com a segurança da arara-azul-de-lear e que, durante todo o processo, apresentou alternativas possíveis de modificações na rede elétrica, como um inibidor de pouso das aves na rede. Segundo Khoury, a medida não foi aceita pela comunidade, que disse que o inibidor, na verdade, atrairia as araras para os fios. 

Depois da delimitação da área de maior incidência das araras, a Neoenergia Coelba afirma que apresentará nova proposta de readequação da rede elétrica.

O TURISMO DAS ARARAS: São 17h50 e o canto das araras-azul-de-lear se faz ouvir pela Fazenda Juazeiro, distrito de Euclides da Cunha. É sempre um acontecimento o retorno das araras para seus dormitórios, em Canudos, mais lembrada pela guerra que ocorreu na cidade que pela presença das araras azuis.

“Quando chega essa hora, eu vou para frente de casa”, conta Jucione de Santana, 43. O amadurecimento dos frutos de licuri está próximo, vai de janeiro a junho, e com ele as visitas das araras se tornarão mais constantes. “Elas ficam bem aqui no meu quintal”, conta Jucione. 

As araras fazem parte do cotidiano local. Em diferentes temporadas, turistas brasileiros e estrangeiros chegam às hospedarias da cidade para conhecê-las. Para isso, acordam 4h30 para ir até Canudos.

É onde funciona a Estação Biológica de Canudos, parque privado que abrange as áreas dos dormitórios das araras que, de manhãzinha, partem em busca de comida e só voltam no fim do dia. Elas gostam do licuri, um fruto típico da caatinga fartamente encontrado ao leste de Euclides da Cunha. 

A Estação, mantida pela Fundação Biodiversitas, pode receber visitas, que custam R$ 200 por pessoa. Roupas claras, barulho e flashes são proibidos. Os grupos não podem reunir mais de 15 pessoas. Eles se sentam em banquinhos de madeiras e a estrada que leva ao observatório é natural. Ameaçadas pelos humanos desde a chegada dos portugueses ao Brasil, as araras aprenderam a ter medo dos humanos. 

“Se trata de um animal em estado crítico de ameaça. Então, a gente não faz nada que cause qualquer transtorno, barulho, transtorno ao animal qualquer coisa que interfira vai prejudicar no crescimento da população”, explica Tania Maria da Silva, bióloga da Fundação Biodiversitas. 

Nas redondezas, uma parte da população sempre admirou a beleza do animal. Mas, para a fome, ele também era alimento, e os caçadores não se inibiam em atirar contra seu corpo de, em média, 75 centímetros.

Nos espaços da Academia e dos museus europeus, a arara-azul-de-lear já era descrita desde o século 19. Constava em quadros. Só em 1978, no entanto, depois de tanta procura, ela foi catalogada, oficialmente, no Norte baiano, pelo ornitólogo alemão naturalizado no Brasil, Helmut Sick. 

O mistério, enfim, estava solucionado. O problema do desaparecimento da espécie, por outro lado, não. Quando Sick encontrou as araras-azuis-de-lear, havia apenas 21 delas contabilizadas. O projeto de monitoramento das araras, iniciado pelo Icmbio e organizações ambientais, surtiu resultado. Em 2019, último ano do levantamento, eram 1469 araras-azuis-de-lear na Bahia. 

Antes do censo, havia gente como o avô de Mário Reis, que já falava e conhecia araras.

“Eu me lembro delas jovem, mas só me tornei defensor de uns 15 anos para cá. Virei ambientalista e defensor ferrenho da Caatinga e das araras”.

Reis viu o entorno encher de pessoas interessadas em ver as araras, que se tornaram um atrativo turístico que impacta a economia local. Ele próprio se tornou guia de expedições de turistas.

“A região toda sabe do problema do choque elétrico. A mortandade está muito grande”. No dia do fechamento desta publicação, a grandeza da mortandade se mostrou mais uma vez. A reportagem foi avisada da morte de outra arara, às 10h da última quinta-feira (6).

Dessa vez, um senhor encontrou o animal morto, sob um poste de energia no Povoado de Serra Branca, Euclides da Cunha. Ensacada e levada ao freezer, menos uma arara pincelou de azul o céu da caatinga no fim daquela tarde em que deveria voltar para casa.

Correio 24hs Fernanda Santana Foto divulgação

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