Elza Soares, um voz do planeta da fome com ecos no milênio

Artigos
A cantora Elza Soares, faz show na abertura da oitava edição do Festival Latinidades, maior festival de mulheres negras da América Latina (Marcello Casal Jr/Agência Brasil)

Elza Soares partiu deixando conosco 91 anos de dignidade exercida com coragem, talento e brasilidade. Perseguida pelos remanescentes da escravização, que não suportaram e mandaram os meios de comunicação esconder a notícia de que aquela cantora, nascida na Vila Vintém, em Bangu, fora considerada, pela BBC de Londres, como a “Voz do Milênio”. A mídia brasileira jamais a homenageou por isso, prevalecendo o ódio oculto àquela que era uma quilombola do palco, espalhando rebeldia e coragem. 

A classe dominante brasileira não a perdoou nunca por ter cantado no Comício da Central do Brasil, em 13 de março de 1964, quando o presidente Jango lançou as Reformas de Base, convocando o povo para a Nacionalização total da Petrobrás, da Reforma Agrária, da Reforma Urbana, a Erradicação do Analfabetismo, o Voto aos Analfabetos. Logo após o golpe de 31 de março de 64, a casa de Elza foi invadida por agentes da ditadura, toda sua família, inclusive sua mãe e o próprio Garrincha, foram colocados nus de frente a uma parede, ameaçados e humilhados.

Elza teve força e coragem para encarar o genial, mas arrogante, Ary Barroso, que em seu famoso programa de calouros tentou intimidá-la dizendo, impositivo: de que planeta você veio? A valentia de Elza não permitiu que as lágrimas a sufocassem, deixando o autor da Aquarela do Brasil desnorteado, ao proclamar: “venho do Planeta da Fome. Canto para matar a fome dos meus filhos, pois já perdi dois deles, de fome!”. Esta não foi uma declaração, foi um monumento à dignidade do povo negro do Brasil e do mundo! Foi preciso essa over dose de rebeldia para nascesse um novo e inigualável timbre na música popular brasileira.

Genuína expressão do samba estilo Lata D’água na Cabeça, Elza teve que enfrentar a vida inteira o rancor oculto e as chicotadas reais de uma burguesia que tem ódio ao samba que é a Mistura da Raça e Democrático, como na célebre canção de Janet de Almeida, que ironizava “vamos acabar com o samba, madame não gosta que ninguém sambe, vive dizendo que samba é veneno, pra quê discutir com madame¿”. Elza musicalizou-se ouvindo nas matas o cantar do luva-Deus, venceu as inúmeras penas de morte do Planeta da Fome, e, mesmo violentada, transformou sua indignação e revolta em puro talento, ginga, graça e combate, dando à sua voz um merecido timbre milenar.

O caixão era pequeno demais para sua dignidade, o próprio Teatro Municipal era tacanho para aquela gigante, como gigante era o choro sincero e agradecido dos populares que lá foram para ver, pela última vez, aquele rosto altivo e firme, sua testa combativa, sua pele cor brasileira, com as marcas de quem passou 91 anos resistindo e combatendo o pelourinho eletrônico da mídia racista, driblando-o ao estilo Garrincha, seu grande amor, nosso Chaplin dos gramados, fazendo de sua vida um golaço! Quantas Elzas nascerão e conseguirão escapar das sistemáticas chacinas nos morros cariocas, para seguirem sua estrada luminosa de inteligência, talento e alma brasileira ¿ Se como povo, fomos capazes de dar uma Elza ao mundo, é sinal que podemos muito mais!

Foto: Marcelo Casal Jr/Agência Brasil Beto Almeida

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *