Alcione, Beth Carvalho, Clara Nunes, Dona Ivone Lara e Elza Soares são nomes incontestáveis no abecedário da música popular brasileira. Mais do que isso, elas podem — e devem — ser consideradas autênticas rainhas do samba, gênero que contribui decisivamente para a avaliação do nosso cancioneiro como um dos de maior relevância no mundo. Até por isso, soa com total coerência a escolha das cinco como protagonistas de Canto de rainhas, o recém-lançado livro de Leonardo Bruno, que busca ressaltar também o poder das mulheres na criação artística do país.
Donas de vozes potentes e intérpretes personalíssimas, essas mulheres ultrapassaram as barreiras do machismo e do racismo para alcançarem o patamar mais alto da MPB, lado a lado com outras artistas não menos importantes como Clementina de Jesus, Elizeth Cardoso, Elis Regina, Maria Bethânia, Gal Costa e Nara Leão. Sucessoras de Tia Ciata, Chiquinha Gonzaga, Marília Batista e Nora Ney serviram de referência para as que vieram depois, entre as quais Marisa Monte, Teresa Cristina, Fabiana Cozza, Nilze Carvalho, Mart’nália e Mariene de Castro.
Jornalista com presença frequente em rodas de samba e na cobertura dos desfiles das escolas no carnaval do Rio de Janeiro e participante de cerimônias de premiação desse segmento, Leonardo Bruno é autor de livros sobre a Acadêmicos do Salgueiro e Unidos de Vila Isabel e co-autor da biografia de Zeca Pagodinho. Ele demonstrou com a obra seu profundo conhecimento sobre trajetória de Alcione, Beth, Clara, Elza e Ivone. Mas, para escrever Canto de rainhas, entrevistou dezenas de mulheres ligadas ao samba e recorreu a uma vasta bibliografia.
Usando prosa quase coloquial, ele propôs com Canto de Rainhas construir um retrato da música brasileira nas últimas décadas, ao mapear a caminhada, as vivências, as lutas e conquistas das personagens como representantes do samba e do universo feminino. No primeiro capítulo, o autor, de forma ousada, reúne trechos de entrevistas das cinco homenageadas, e monta uma espécie de bate-papo entre elas, algo que nunca ocorreu, uma vez que as cinco jamais estiveram lado a lado num mesmo ambiente.
“Que bom saber que Alcione apreciava a voz de Núbia Lafayette, Beth era fã de Marlene, Clara admirava Elizeth Cardoso, Elza gravou Dona Ivone, antes mesmo que essa tivesse seu primeiro disco lançado. A leitura de Canto das Rainhas me mostrou que cada voz, cada mulher foi importante para forjar a voz feminina no samba”, diz a cantora e compositora Teresa Cristina no texto de orelha.
No prefácio, a jornalista Flávia Oliveira destaca a escolha, por Leonardo Bruno, das personagens de Canto de Rainhas — O poder das mulheres que escreveram a história do samba. Num determinado momento enfatiza: “Cinco mulheres que se provaram talentosas, relevantes, corajosas independentes, ainda que inseridas num mercado profissional machista, racista, elitista — em alguns casos, tudo isso junto”.
Canto de Rainhas – O poder das mulheres que escreveram a história do samba
De Leonardo Bruno. Editora Agir, 416 páginas. R$ 89,90.
Como surgiu o Canto de rainhas?
O livro nasce de minha paixão pelas cantoras de samba. Observando suas trajetórias mais de perto, senti a necessidade de mostrar as barreiras que elas enfrentaram por serem mulheres num ambiente machista. O mundo do samba é historicamente dominado pelos homens, e as mulheres que conseguiram chegar ao topo, apesar de tantas dificuldades, são vitoriosas. Evidenciar a opressão que elas sofreram é uma forma de evitar que as novas gerações passem pelas mesmas situações.
A escolha de Alcione, Beth Carvalho, Clara Nunes, Elza Soares e Dona Ivone Lara como personagens tem um significado?
Alcione, Beth Carvalho, Clara Nunes, Dona Ivone Lara e Elza Soares são figuras muito marcantes para quem acompanha o samba dos anos 1970 pra cá. Elas são a trilha sonora da minha vida, e acredito que de boa parte dos brasileiros. Muitas vieram antes, como Elizeth e Clementina; muitas vieram depois, como Jovelina e Teresa Cristina; mas acabei focando nesse ABCDE porque queria investigar algumas histórias mais a fundo. E as trajetórias dessas cinco são fantásticas.
Durante quanto tempo você se deteve na apuração dos fatos ligados à trajetória das cinco?
O processo todo do livro demorou três anos. A pesquisa foi muito extensa, por precisar reconstituir as trajetórias de muitas personagens. Foram dezenas de entrevistas, um mergulho gigante em jornais e documentos antigos, além de um trabalho longo de escrita. O livro trata de questões muito delicadas (machismo, racismo, elitismo, etc) e eu me apoiei numa literatura consagrada para dar conta do entendimento de trajetórias tão complexas.
Teve mais dificuldade em alguma delas?
Não, a tristeza que tive foi nunca ter conversado com Clara, a única das cinco com quem não tive contato. Estar com a pessoa e senti-la é muito importante para um trabalho desses.
No caso de Beth Carvalho, Clara Nunes e Dona Ivone Lara, que já morreram, houve dificuldade maior?
Beth foi entrevistada para o livro. Ivone não, mas conversei inúmeras vezes com ela sobre os temas abordados aqui. Apenas Clara tive que biografar “a distância”.
Essa obra é voltada para um público específico ou imagina que ela possa despertar a atenção e interesse de diversos segmentos?
A meu ver, Canto de rainhas pode interessar a três tipos de público. Em primeiro lugar, aos fãs das cantoras de samba, especialmente das cinco que estão na capa, porque o livro faz um mergulho muito profundo em suas histórias. Em segundo lugar, no amante do samba de forma geral, porque através delas é possível reconstruir um pouco a história do samba. E, em terceiro lugar, as pessoas interessadas em questões como femininos e racismo. O livro traz um olhar atento sobre estes temas a partir das histórias das rainhas.
Que sensação viveu ao escrevê-la?
A sensação que tive foi a de estar presente ao encontro entre elas, descrito no primeiro capítulo do livro. Eu e elas numa roda, conversando sobre diversos assuntos. Olha que privilégio!
Por Irlam Rocha Lima/correiobraziliense/Foto: Marcos Hermes/Divulgação)