Faz tempo que a camisa da seleção brasileira de futebol deixou de se limitar aos estádios e invadiu os palanques de atos políticos. E, à medida que o verde e amarelo da bandeira do país ia se associando ao guarda-roupa dos apoiadores do governo, uma outra parcela da população desapegava, digamos, do símbolo pátrio, refletindo o clima de polarização que se instaurava no país.
Agora, porém, alguns desses mesmos cidadãos que tinham deixado de se identificar com esses emblemas vêm buscando retomá-los. Seja com a bandeira enrolada no corpo de Daniela Mercury, com o look verde, amarelo e azul de Anitta, no festival Coachella, ou com a camisa da CBF usada por Djonga no Breve Festival, realizado na capital mineira no mês passado, artistas abertamente antibolsonaristas têm adotado símbolos que, nos últimos anos, passaram a ser marcas de quem apoia o presidente.
Com as eleições se aproximando, o movimento ganha forma, com hashtags como #ABandeiraÉNossa, #DevolvamANossaBandeira e #RetomadaDaBandeira, e vira até parte de performances artísticas.
Pouco tempo atrás, porém, seus adeptos eram mais tímidos e prezavam pela parcimônia. É o caso de Daniela Mercury, que, há dois anos, hesitou em vestir a bandeira numa live.
A cantora conta que, na época, vários de seus amigos diziam não ter vontade de se enrolar no tecido, usando o argumento de que estavam demasiadamente frustrados com o país e não queriam ser vistos como bolsonaristas.
Apesar da incerteza, a baiana seguiu na direção oposta e, desde então, tem adotado a bandeira. “A gente precisa mostrar que são símbolos de um povo diverso, e jamais de uma minoria extremista”, diz Mercury, que, no último Dia do Trabalhador, se apresentou num evento em São Paulo organizado por de sete centrais sindicais, onde bradou tanto a bandeira nacional quanto uma vermelha estampada com as estrelas do PT e um retrato de Lula jovem.
“São bandeiras separadas, com significados distintos. Uma é sobre um [possível] novo governo, outra de uma nação”, diz ela. “Neste momento precisamos unir o verde, amarelo, branco, azul e vermelho”.
No show, que rendeu à cantora acusações informais de showmício pró-Lula —após a viralização de um suposto contrato entre ela e a prefeitura de São Paulo, que bancou o evento e, depois da polêmica, suspendeu o cachê dela—, a artista cantou ainda trechos do hino e a parceria com Milton Nascimento “Sol da Liberdade”, que traz versos que celebram o Brasil.
“Eu passei 20 anos da minha vida sem usar as cores do Brasil. Ninguém vai tirá-las de mim de novo”, diz ela, lembrando a juventude vivida em meio à ditadura militar, regime que teve um papel importante na formação do imaginário popular sobre símbolos nacionais.
Segundo Wilson Gomes, professor da Universidade Federal da Bahia, a UFBA, e autor de “Transformações da Política na Era da Comunicação de Massa”, a cultura brasileira de símbolos oficiais difere daquela de países como Estados Unidos e Suíça —onde não é nada difícil encontrar referências a emblemas nacionais em casas e ruas— justamente por causa dessa herança deixada pelos militares.
Ele afirma que campanhas como “Brasil, ame-o ou deixe-o”, difundida nos anos Médici, no início da década de 1970, ajudaram a estabelecer as instituições militares do país, num movimento ultranacionalista inspirado em governos fascistas, e afastou vários brasileiros “da possibilidade de um patriotismo” que fosse além da Copa do Mundo de futebol e das Olimpíadas.
Anos mais tarde, analisa Gomes, as tensões desse simbolismo foram, então, engatando em novos contextos. Foi o caso da campanha presidencial de Collor de Mello de 1989, marcada pela frase “a nossa bandeira jamais será vermelha” —muito repetida, aliás, por Bolsonaro e seus apoiadores, que se agarraram ao verde e amarelo como estratégia de oposição aos governos anteriores, do PT.
“Vários partidos de esquerda sempre se apresentaram com símbolos vermelhos e adotaram discursos que colocam a América Latina como uma só nação”, diz Giuliano Miotto, advogado presidente do Instituto Liberdade e Justiça e criador da Turminha da Liberdade, de livros infantis de direita. “O brasileiro tem dificuldades de ver sua identidade enquanto povo. E Bolsonaro entendeu que se agarrar aos símbolos nacionais faria sentido para as pessoas”.
Miotto afirma que os próprios movimentos e partidos de esquerda brasileiros que agora tentam se aproximar dos símbolos nacionais têm responsabilidade nesse processo de desassociação dos símbolos pátrios.
“É natural que um povo queira proteger sua identidade. O que os bolsonaristas viram nesses símbolos foi, na verdade, uma forma de autopreservação da nação.” Ele cita um vídeo recente em que Lula e Alckmin aparecem juntos ouvindo o hino da Internacional Socialista, o que gerou críticas e deboches de adversários. “A sensação que ficou é a de que eles não valorizam o próprio país. Causa um desconforto”, diz Miotto.
“A bandeira do Brasil e as cores da bandeira pertencem aos brasileiros. Representam o Brasil em geral. Ninguém pode se apropriar do seu significado”, escreveu Anitta no Twitter, pouco depois de se apresentar no festival Coachella, nos Estados Unidos, em março deste ano. Logo recebeu uma mensagem de deboche do presidente, que retuitou a postagem dizendo que concordava com a cantora.
Ao contrário de Mercury, Anitta não declarou voto em Lula —e em nenhum outro pré-candidato. Mas também vem falando com mais frequência em retomar os símbolos oficiais do país em meio à sua intensa campanha contra Bolsonaro.
Outros cantores decidiram levantar essa bandeira literal de formas mais sutis. É o caso de Iza, que no videoclipe de “Gueto”, lançado no ano passado, sensualiza sobre um chão pintado com a estampa da bandeira, numa imagem que remete aos asfaltos ultracoloridos do país em época de Copa. Embora a letra da música não chegue a ser política, Iza comentou em entrevistas o cenário do clipe e defendeu a retomada desses emblemas nacionais.
Não é só entre artistas do meio musical que esse movimento tem engatado. Em São Paulo, por exemplo, é possível encontrar grafites da bandeira do Brasil com “fora, Bolsonaro” no lugar do lema positivista “ordem e progresso” em regiões como a Consolação e o Largo da Batata.
O resgate tem gerado até lucro para alguns. A loja Peita Me, por exemplo, vende camisetas em verde e amarelo estampadas com a frase “ele não”, em referência ao movimento homônimo que explodiu em 2018 entre os críticos do então candidato Bolsonaro.
Idealizadora da marca, Karina Gallon conta que a princípio temeu o lançamento do produto. A maioria de sua clientela é formada por pessoas de esquerda, e ela pensou que eles torceriam o nariz para a camiseta por causa de sua associação com o bolsonarismo.
Segundo a especialista em ciência política Maria Victoria Benevides, fundadora da Comissão Arns, esse movimento de resgate da bandeira pela esquerda ainda é, porém, limitado e restrito a uma bolha militante. Além disso, até o momento, ele não mostrou ser capaz de realmente desassociar o verde e amarelo do bolsonarismo.
E, se de um lado há artistas antibolsonaristas que veem com bons olhos esse movimento de retomada dos emblemas pátrios às vésperas da eleição, há também aqueles que discordam dele.
A artista visual Juliana Gomes, militante da causa indígena, por exemplo, diz não ver sentido em se apegar a ícones que, segundo ela, mais dizem sobre o passado colonial brasileiro do que sobre a própria noção de brasilidade.
“A bandeira é só mais um símbolo dessa nação inventada”, diz ela. “Não vejo razão alguma para reivindicar como identidade as fronteiras imaginárias impostas e os símbolos que são instrumentos de legitimação de poder de nossos algozes”.
Já Daniela Mercury diz que essa é “a história que somos”. E afirma que prioriza dar valor a políticas de reparação histórica em vez de “abrir mão desses símbolos”.
Marina Lourenço/Folhapress/Foto: Folhapress