Dez anos depois, o Código Florestal mostrou potencial de trazer informações sobre o país e também vem demonstrando suas limitações, algumas das quais já tinham sido apontadas no momento de sua constituição.
A lei —ainda longe de ser cumprida em sua plenitude e inicialmente muito contestada nas esferas ambientais— agora é defendida em meio a tentativas de ampliar pontos anteriormente já muito criticados.
O código de 2012 surge em um contexto de anos consecutivos de quedas no desmatamento da Amazônia e de crescente poder político e de influência do agronegócio.
Segundo Raoni Rajão, pesquisador da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), já existia o alerta na época de que o documento, da forma como entrou em vigor, promoveria uma grande anistia, levando a novas derrubadas de floresta e mais anistias futuras.
O pesquisador lembra que, no momento da aprovação, houve um racha na sociedade civil ambientalista. Enquanto uma parte defendia que o código não poderia avançar da forma que estava, a outra aceitava a ideia de “passar uma régua” no passado e iniciar uma mentalidade de desmatamento ilegal zero.
Segundo Izabella Teixeira, ministra do Meio Ambiente à época da construção e aprovação do código, o contexto tem início no fim do governo FHC, já com sinalizações de polarização entre a área ambiental e a agricultura.
Teixeira diz que, nas discussões no Congresso, não existia uma bancada ambientalista robusta, em comparação à do agro. Acordos políticos foram negociados, além do gerenciamento da disputa interna entre Ministério do Meio Ambiente e o da Agricultura. Houve ainda pressões de lobbies em todo o país.
“Os ambientalistas não gostam de falar nisso, mas a gente não tinha voto para fazer frente. E eu tive que fazer alianças, com o Palácio do Planalto [governo Dilma Rousseff] ajudando a conduzir isso, com parte do agronegócio e da agricultura familiar”, afirma a ex-ministra. “Obviamente a lei tem imperfeições. É do processo de negociação, do que é possível”.
Rajão concorda com a ideia do pacto em torno do código. “Só que a pergunta é: esse pacto foi cumprido?”, questiona. “Não foi, e aconteceu exatamente o que a sociedade civil e a comunidade científica estavam alertando [sobre grandes anistias a desmatamento]”.
Nos anos que se seguiram à entrada em vigor do novo código, a Amazônia, especialmente, começou a apresentar tendências de desmatamento crescente até explodir, recentemente, sob o governo Jair Bolsonaro e chegar aos mais de 13 mil km² devastados na última medição feita pelo Inpe (período de agosto de 2020 até julho de 2021).
Roberta Del Giudice, secretária-executiva do Observatório do Código Florestal, afirma que, no momento em que se construía o novo código, parecia que era possível garantir maior proteção ambiental. Ela dá como exemplo a regra da “escadinha”, segundo a qual o tamanho da APP (Áreas de Preservação Permanente, como margens de rios) varia de acordo com o tamanho da propriedade.
“Hoje a gente tem área de preservação permanente de cinco metros. Cinco metros não trazem uma proteção efetiva para qualidade de água nem para formação dos corredores ecológicos, é muito pouco”, afirma a pesquisadora.
Porém, segundo o deputado federal Sérgio Souza (MDB/PR), presidente da FPA (Frente Parlamentar da Agropecuária), o código trouxe grandes avanços.
“Ele veio mais para dar a segurança jurídica para o produtor e principalmente para a questão ambiental”, afirma. “O Brasil tem uma preocupação muito grande com o meio ambiente e o produtor rural também tem que ter, porque ele precisa do meio ambiente. Se não tiver um ambiente adequado, ele não consegue produzir, se não tiver alimento a população não consegue se alimentar. Então tem que ter uma sinergia entre conservação do meio ambiente e produção agrícola”.
Segundo Teixeira, houve um enfraquecimento no pacto feito durante a construção do código, diz Teixeira. Um dos pontos que teria levado a isso seria a ação no STF (Supremo Tribunal Federal) de organizações da sociedade civil questionando a constitucionalidade do código —a corte considerou constitucional a maior parte da lei, inclusive a anistia a crimes ambientais anteriores a 2008.
A ex-ministra diz que um segundo ponto de fragilização do código atual ocorreu quando, no início do governo Bolsonaro, o Serviço Florestal Brasileiro —e, consequentemente, o CAR (Cadastro Ambiental Rural)— passou do Ministério do Meio Ambiente para o da Agricultura.
“Criou-se um modelo disfuncional, que se preocupa estritamente com regulação de propriedade, sem ter inteligência de uso da terra, de conservação da biodiversidade, da segurança climática e dos aspectos socioambientais.”
Nos últimos anos, o presidente Jair Bolsonaro tem apostado em discursos que questionam a destruição crescente na Amazônia. Além disso, defende abertamente exploração mineral em terras indígenas, áreas com índices elevadíssimos de conservação, além da importância socioambiental.
“O código realmente mudou de perspectiva”, afirma Del Giudice. “O discurso antiambiental dos últimos anos faz com que esse código seja a melhor peça possível nesse cenário. Ainda enfrentamos um ataque sistemático no Congresso Nacional com projetos de lei que reduzem a proteção legal”.
O Congresso aprovou um projeto que altera o código e autoriza municípios a definirem o tamanho da área a ser protegida ao redor de rios. O texto foi sancionado por Bolsonaro.
Mas o documento gerou muito mais informações sobre o país, em grande parte graças ao CAR. Apesar de já existirem iniciativas antigas envolvendo o cadastro rural, a ideia só foi universalizada com o Código Florestal, diz Raoni Rajão. “Não podemos ignorar que surgiu uma base com 6,5 milhões de produtores.”
Procurado, o Ministério da Agricultura também destaca o potencial informativo do CAR.
O pesquisador da UFMG, porém, aponta que houve uma estagnação, inclusive tecnológica, dos processos relacionados ao CAR. Há, por exemplo, uma grande demora para validação dos registros feitos, o que dificulta a evolução para as próximas fases, como processos de regularização ambiental.
A Pasta da Agricultura afirma que compete às Unidades Federativas a análise do CAR, mas também afirma que Serviço Florestal Brasileiro desenvolveu um módulo de análise dinamizada que é capaz de identificar problemas ao cruzar bases de dados de referência com a declaração feita pelo proprietário, “emitindo o diagnóstico da situação ambiental do imóvel rural”.
Izabella Teixeira afirma que outro ponto importante do código foi possibilitar a obtenção de informações usadas no desenho de restauração da meta climática brasileira, que foi apresentada em 2015 para a assinatura do Acordo de Paris.
Segundo Rajão, agora é necessário superar os problemas de regulamentação e implementação do código (como recuperação de áreas em propriedades privadas), além de alinhar com outras políticas que afetam a questão ambiental. Uma delas é a de crédito bancário para uso no agronegócio, por exemplo.
“O produtor vai e desmata, e o banco não pergunta se ele tem licença para isso. Por que não? Eu não posso financiar algo ligado a um crime em potencial, e hoje é muito fácil saber se uma área específica está sendo desmatada ou não”, afirma Rajão.
Independentemente da situação atual de aplicação do código, a conta do desmatamento já é sentida. Por exemplo, na porção sul da Amazônia, altamente degradada e desmatada, o período de pluviosidade já foi profundamente alterado, perdendo um mês de chuvas e, consequentemente, impactando a produção agrícola —o que, há décadas, já era previsto.
Phillippe Watanabe/Folhapress