Impulsionada por verbas de emendas parlamentares, a estatal Codevasf já firmou contratos para distribuição de quase R$ 600 milhões em máquinas, veículos e equipamentos desde 2021, porém sem critérios técnicos e para atender à vontade de deputados federais e senadores.
Às portas do período eleitoral e na esteira da explosão de gastos com as chamadas emendas de relator, os valores com esse tipo de doação saltaram de R$ 178 milhões, em 2020, para R$ 487 milhões, em 2021, um aumento de 173%.
Só nos primeiros cinco meses de 2022, o montante chegou a R$ 100 milhões, segundo levantamento da Folha a partir de dados obtidos por meio da Lei de Acesso à Informação.
A lista de bens distribuídos principalmente aos aliados dos parlamentares padrinhos das emendas inclui até kits de panificação e freezers, além de barcos de alumínio, furgões, caminhões basculantes, caminhões de lixo, tratores, implementos agrícolas, motoniveladoras e retroescavadeiras.
Apurações da CGU (Controladoria-Geral da União) já mostram doações feitas sem relação com finalidades da estatal, que foi criada para desenvolver projetos de irrigação no semiárido brasileiro mas mudou sua prioridade para se tornar uma grande distribuidora de produtos e executora de obras de pavimentação.
A CGU também aponta como irregularidades entregas sem justificativa quanto à quantidade, fornecimentos em duplicidade em municípios e a falta de informações sobre beneficiários.
Em alguns casos, os documentos com os motivos das doações parecem copiados uns dos outros para justificar os gastos. Parte das distribuições dos bens está em fase de celebração, mas a maioria já foi entregue.
Entre as dez cidades que mais receberam doações de maquinário, Pedra Branca do Amapari (AP) é um município de cerca de 14 mil habitantes que recebeu R$ 5,5 milhões em equipamentos, segundo a estatal.
A prefeita da cidade, Beth Pelaes, é aliada do senador Davi Alcolumbre (União-AP), a quem agradeceu por uma motoniveladora e um trator.
“A aquisição é fruto de articulação do senador @davialcolumbre junto à @codevasf.gov.br e totaliza 75 máquinas adquiridas por intermédio do Governo do Estado que foram entregues às prefeituras”, escreveu a prefeita, em suas redes sociais.
A prefeita afirmou à Folha que equipamentos foram recebidos por emendas e articulação de Alcolumbre, assim como de outros parlamentares para quem foram feitos requerimentos.
“Nós precisávamos e utilizamos até hoje esse maquinário, tanto para coletar lixo, pois que não tínhamos nenhum caminhão coletor, quanto para a agricultura do município, que só é mecanizada graças a esses maquinários que vieram em boa hora, disse.
O estado de Alcolumbre, o Amapá, é o quarto que mais recebeu doação de maquinário da Codevasf, atrás apenas de unidades da federação mais populosas, como Minas Gerais, Goiás e Tocantins. As cidades do Amapá são 8 entre as 10 com mais máquinas recebidas pela estatal.
A Codevasf (Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba) é uma estatal que foi entregue por Bolsonaro ao controle do centrão em troca de apoio político. Ela foi turbinada às custas das emendas de relator, que favorecem parlamentares influentes do centrão.
No Piauí, por exemplo, a senadora Eliane Nogueira (PP-PI), mãe do ministro-chefe da Casa Civil Ciro Nogueira (PP-PI), que influi na liberação desse tipo de verba, informou ter indicado R$ 17 milhões em emendas de relator com objetivo de distribuição de máquinas por parte da Codevasf.
As entregas garantem publicidade aos parlamentares. Em outubro, Eliane participou de entrega de motoniveladora na cidade de Oeiras (PI), segundo o site da prefeitura.
“Com investimentos do Governo Federal, intermediados pelo ministro-chefe da Casa Civil, Ciro Nogueira, estamos garantindo novas conquistas para Oeiras”, disse o prefeito Zé Raimundo, do mesmo partido do ministro, segundo publicação no site oficial.
O presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), também é elogiado nas redes por políticos locais após as entregas de bens.
De acordo com publicação de 26 de junho no site da cidade de Estrela de Alagoas, às vésperas do período eleitoral o prefeito Aldo Lira (PP) e Josias Aprígio (PP), administrador da cidade de Mirante do Negrão, receberam um caminhão e tratores com vários equipamentos.
A página da cidade diz que o prefeito Aldo Lira a agradece os apoios do presidente da Câmara dos Deputados e do superintendente da Codevasf em Alagoas, Joãozinho Pereira, que é primo de Lira, entre outros.
O fato de o governo Bolsonaro ter transformado a Codevasf em um emendoduto levou a CGU a fazer um estudo sobre a aplicação do dinheiro público pela estatal.
A controladoria aponta falhas na distribuição de equipamentos e veículos, que, segundo a análise, é feita puramente com base nas indicações dos congressistas, que decidem quais bens serão comprados, quais serão as quantidades e onde eles serão entregues.
O trabalho alerta que essa situação pode “contribuir para o aumento das desigualdades regionais” e o fato de a Codevasf se posicionar “somente como executora das contratações” pode ser apontada como causa para os problemas.
Além da análise das compras em todos os estados abrangidos pela Codevasf (15 ao todo, além do Distrito Federal), a controladoria também divulgou em 2022 um outro relatório sobre as aquisições feitas para o Tocantins.
O trabalho ressaltou a falta de verificação quanto àqueles que recebem os bens. O órgão afirma que até há documentos sobre o tema, mas eles são preenchidos com textos iguais, sem individualização das situações.
CODEVASF DIZ QUE AÇÕES ATENDEM A INTERESSES SOCIAIS
A Codevasf afirmou que os projetos servem ao interesse social e “são empreendidos com abordagem técnica, independentemente da origem dos recursos orçamentários”.
“A companhia provê informações e orientações aos autores de emendas ao orçamento, com o objetivo de subsidiar decisões de alocação e proporcionar máximo benefício à sociedade. A destinação de bens é precedida de análises de adequação técnica, conformidade legal e conveniência socioeconômica”, diz.
A estatal ainda diz que o aumento de bens está alinhado ao propósito de dar eficiência e celeridade ao orçamento da companhia.
O senado Davi Alcolumbre afirma que o Ministério do Desenvolvimento Regional e a Codevasf são os responsáveis pelo processo de execução orçamentária dessas emendas, “inclusive pela definição de critérios técnicos, sem nenhuma interferência parlamentar fora de critérios legais”.
Diz ainda que “continuará trabalhando para incentivar os investimentos no Amapá”.
O presidente da Câmara, Arthur Lira, diz que ele, “assim como todos os deputados e senadores, liberam emendas para todos as prefeituras que justificam as necessidades. Os recursos são autorizados após o cumprimento de critérios técnicos previstos em lei. Isso traz benefícios para o povo, que é o mais importante. Cabe aos órgãos de controle a fiscalização eficiente para o bom uso dos recursos”.
A Folha procurou Eliane Nogueira mas não obteve resposta até o momento.
Artur Rodrigues e Flávio Ferreira, Folhapress