O ministro emérito da Suprema Corte fala sobre Constituição, eleições e a paixão por poesia. Ex-presidente do TSE, ele assegura que os equipamentos eletrônicos de votação são invioláveis.
O Podcast do Correio recebeu, ontem, o ministro emérito do Supremo Tribunal Federal (STF) Carlos Ayres Britto. Poeta desde os 13 anos, o também professor, escritor, jurista e advogado conversou com as colunistas Denise Rothenburg e Ana Maria Campos. Ele lamentou o clima de acirramento político no país. “Período de eleição deveria ser de celebração, de festa, uma dança da democracia. Em eleição, nós exercitamos nossa cidadania, para, no dia do voto, saber em quem votar com mais consciência”, disse.
O agora ministro aposentado do STF presidiu o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) por dois anos, de 2008 a 2010. Ele criticou a desconfiança nas urnas eletrônicas, estabelecendo um paralelo entre covid-19 e fraude eleitoral. “Assim como a covid odeia vacina, a fraude eleitoral odeia urna eletrônica”, afirmou, ressaltando que o equipamento é rápido e seguro.
Na avaliação dele, nunca houve um momento tão tenso entre os Poderes Executivo e Judiciário como agora. Confira os principais trechos da entrevista e ouça na sua plataforma de áudio preferida ou assista no YouTube do Correio.
Como o senhor avalia este período do TSE? A gente vê as Forças Armadas discutindo as urnas eletrônicas, a segurança do voto. Vê risco ao voto?
É estranho mesmo esse tensionamento, essa fricção e estresse coletivo. Período de eleição deveria ser de celebração, de festa, uma dança da democracia. Em eleição, nós exercitamos nossa cidadania, para, no dia do voto, saber em quem votar com mais consciência. Às vezes, o período educa mais do que a escola. Como nós sabemos, cidadania é qualidade do cidadão. Cidadão é habitante da cidade-Estado. Cidadão não é o indivíduo, indivíduo é gente. Cidadão é agente. É envolvido com as coisas da cidade. É quem é dotado de espírito público. Então, esse período eleitoral é para orientar o cidadão quanto às propostas e biografias dos candidatos. Não é para o país estar triste, dividido em uma espécie de cabo de guerra permanente. O voto está assegurado, é direito, secreto, universal, periódico.
O senhor considera a urna segura?
Fui presidente do TSE por dois anos, de 2008 a 2010. Presidi uma eleição nacional. Meu testemunho é de que a urna eletrônica é tão rápida quanto segura, fidedigna. Assim como a covid-19 odeio vacina, a fraude eleitoral odeia urna eletrônica, porque é impossível fraude eleitoral com urna eletrônica.
O senhor foi integrante do STF durante quase 10 anos e atuou em um dos momentos mais importantes da política e da história nacional, que foi o julgamento do mensalão. O Supremo era muito respeitado naquele momento. Hoje, a gente vê que uma parte da população bombardeia o a Corte. Na sua opinião, o Supremo errou ou erraram essas pessoas que passaram a desrespeitar a Corte?
A internet viabiliza a comunicação das pessoas tão instantaneamente. Nós estamos administrando a internet ainda, digamos, pisando em ovos, ainda experimentalmente.
Já viu algum momento mais tenso do que este em relação ao Executivo versus Judiciário?
Sinceramente, não. O Brasil parece que está confundindo a virtude do pluralismo com o defeito grave do divisionismo, setores opostos estão muito sectarizados. Democracia não vence por nocaute, quem vence por nocaute é ditadura. Democracia é processo. Vence por acúmulo de pontos. Há um entendimento coletivo de que a democracia é o único regime político civilizado.
O sistema judiciário brasileiro errou com o ex-presidente Lula?
Às vezes, a consciência plena, ou melhor dizendo, o equacionamento mais claro e consistente tecnicamente das causas não vem de estalo. Nem o Supremo é infalível cognitivamente. Pode tomar uma decisão e, mais adiante, entender que não foi a melhor decisão.
Fica difícil para a população entender. Por que Sergio Moro condenou, o TRF4 acolheu a decisão, o STJ, idem, e até no Supremo ele foi mantido preso. Isso não seria, também, uma das causas deste mau humor de parte da população com o STF?
Tudo é aprendizado, é processo. O que interessa é que haja pureza de intenções e honestidade intelectual em tudo. Para se chegar à conclusão de que o juiz Sergio Moro, em alguns processos, não tinha competência e, em outros, atuou com parcialidade, o Supremo demorou. Segundo os ministros, porque não tinha condições de chegar a essa conclusão se não mesmo com o devido processo legal transcorrendo. O compromisso do julgador é com a verdade dos autos. E a verdade dos autos revelavam ora parcialidade ora suspeição.
O próprio comportamento dele ao ter largado a magistratura em um acordo para ser ministro da Justiça e hoje é candidato não deu o argumento da parcialidade?
Não se pode tapar o sol com a peneira. É estranho. Mas não me sinto à vontade para falar dessas coisas, porque eu não me considero um analista político. Eu sou analista jurídico.
O senhor está advogando?
Eu era advogado antes de ir para o Supremo. Depois, fiz a quarentena e voltei a advogar, a emitir pareceres, fazer lives, conferências. Minha praia é essa mesmo.
O que lhe causa mais prazer: ser ministro do Supremo ou advogado?
Os dois. Fiquei muito feliz depois que me formei em direito porque confirmei minha vocação. Quando fui para o Supremo, foi uma honra enorme a oportunidade de servir ao país, a partir de uma Casa que, sobretudo interpretando a Constituição, faz o destino nacional. Desde que o Supremo seja fiel à Constituição, desde que não seja ativista, e eu não acho que ele tem sido ativista.
Nem naquele inquérito em que o Supremo abriu, investiga e julga, que tem até reclamação dos bolsonaristas?
Já critiquei um pouco isso, mas o fato é que o Regimento do Supremo, no particular, que autoriza isso, é anterior à Constituição. E foi recebido pela Constituição com a força de lei — como se fosse lei em sentido formal, lei em sentido material —, e, por isso, habilitaria o Supremo a agir como agiu. Eu me lembro de Hans Kelsen, que foi o maior jurista do século 20. Ele dizia que a norma geral, impessoal, abstrata, por exemplo, a própria Constituição, na sua parte permanente, lei em sentido material, é quase sempre uma moldura aberta. Cabe mais de um recheio, mais de um conteúdo, a depender do intérprete. O Supremo não é infalível. Agora, o que o Supremo deve fazer cada vez mais, não é cortejar a opinião pública. Cortejar a opinião pública é jogar para a plateia, é populismo. Ele deve satisfações à opinião pública. Como: lavrando decisões claras, bem fundamentadas.
No Twitter, o senhor fala muito sobre meditação. “Meditação é a arte de tocar na pele da luz com dedos de cetim.” Está fazendo meditação mesmo?
Como sou poeta, essas frases me vêm de estalo, espocam. Há 30 anos que eu faço duas coisas: meditação oriental, todos os dias, e sou vegetariano.
E como é o seu processo criativo?
Não tem explicação. Vou dar um exemplo. Eu estava relatando um processo, acho que era aqui do Mato Grosso. Queria preservar uma floresta. Em um dado momento, eu falando só tecnicamente, tecnicamente, disse: “Olhe, ministros, vamos convir: as matas virgens são as que mais procriam”. Foi aquela risadaria, todos riram, eu ri. E a gente aprende. Mas faz sentido. E a ficha cai. Daí a importância do meio ambiente ecologicamente equilibrado. A gente, às vezes, por ter essa pegada mais literária, não deixa de emitir um juízo técnico. O conteúdo do juízo é técnico, mas o revestimento linguístico pode ser um pouquinho mais literário.
Surge isso às vezes para o julgador? Ele vê que aquilo é justo, mas, talvez, a norma não se adeque àquela vontade de julgar daquela forma? No Supremo, essa liberdade é maior?
Eu diria que não. Vou citar Vinicius de Moraes: “A vida só se dá para quem se deu”. O que ele quis dizer, me parece: “Olha, a vida só se dá por inteiro a quem por inteiro se dá à vida. Vou fazer a paródia: a norma jurídica, a norma formal, impessoal, abstrata, só se dá por inteiro a quem por inteiro se dá a ela. Como é que você se dá por inteiro à vida e à norma? Quando você concilia QE e QI. Porque todos nós somos feitos de QE (quociente emocional) e QI (quociente intelectual).
Tem de ter um equilíbrio entre as duas coisas e elas se complementam?
Se complementam. E saltam quanticamente para um ponto de unidade quando fazem um casamento por amor. Esse ponto de unidade talvez mereça o nome de consciência. Então, o juiz, um advogado, um operador jurídico, que concilia bem QE e QI, ele se dá por inteiro à norma, aí a norma se dá por inteiro a ele.
Mas também não tem aquele caso que a gente ouve falar muito lá no Congresso: “Quero um parecer que vá por aqui ou pela direita ou pela esquerda”. Não é um cunho ideológico nessa colocação. O senhor vê isso, é isso que acontece?
Às vezes, a gente tem uma intuição. Dizemos mais ou menos assim diante de uma tese, de uma causa, como certa feita falou o poeta português José Régio: “Não sei por onde vou, só sei que não vou por aí”. Quando você diz não sei por onde vou só sei que não vou por aí, já é meio caminho andado. Aí, às vezes, a causa é tão materialmente justa, se impõe tanto ao seu quociente emocional que você diz assim: “Se eu não encontrar no direito positivo, a partir da Constituição, uma base normativa para reconhecer a justiça dessa tese, dessa causa, o problema não deve ser do direito, deve ser meu”. A mesma coisa do indivíduo. A gente é parte de um todo social, mas é também um todo à parte. Você foi feito para, em determinados momentos, saltar para o âmago do universo no que ele tem de verdadeiro. O operador jurídico também chega. Às vezes, ele vai queimando pestanas, vai consultando a consciência, vai lendo mais. Até debaixo do chuveiro ele está pensando na causa. Aí, de repente, vem o eureka.
Tem algum processo que o senhor possa citar em que passou por essa forma de descoberta?
Eu convoquei, modéstia à parte, a primeira audiência pública da história, do Supremo, sobre células-tronco embrionárias. E, pela primeira vez na história, mais de 20, 25 embriologistas, geneticistas, leigos em direito subiram à tribuna do Supremo para fazer sustentação oral. E nós ali, ouvindo, porque nós, humildemente, reconhecemos que não entendíamos dessas peculiaridades da causa. A um dado momento, sobe à tribuna uma geneticista conhecida no mundo inteiro, Mayana Zatz. E ela disse: “Senhores ministros, eu estou cuidando de uma guria, de uma menina, de 7, 8 anos, paraplégica, e não tenho obtido grande sucesso”. Ela era a favor do uso da célula-tronco embrionária, porque a célula-tronco embrionária tem a capacidade de se transformar em qualquer outra célula do corpo humano. Aí, ela contando que, um dia, fim de semana, recebeu um recado da menina que queria falar com ela lá no hospital onde estava. E ela foi lá. Aí, a menininha, sentada na sua cadeira de rodas, disse para a doutora: “Mandei chama-lá porque eu tenho uma sugestão para lhe dar para o meu tratamento. Por que a senhora não abre um buraco nas minhas costas e põe uma pilha, uma bateria, para que eu possa andar como as minhas bonecas?” Aí eu disse para mim mesmo: “Se eu não encontrar na Constituição um fundamento para possibilitar o uso de células-tronco embrionárias nos termos da lei para esse tipo de situação, o problema é meu. E eu encontrei. O meu voto foi, embora por maioria, aprovado. Nós conseguimos.
Foi um prazer enorme recebê-lo. O senhor realmente é um ministro brilhante.
Vocês têm a liberdade de expressão. A liberdade de expressão do indivíduo é bem de personalidade individual. A liberdade de expressão, quando veiculada pela imprensa, é bem de personalidade coletiva. A liberdade de imprensa é absoluta. A liberdade de expressão individual é absoluta. A imunidade parlamentar, por exemplo, por opiniões, palavras e votos, é absoluta, porém, nos marcos da democracia. Porque, se você usar da liberdade de imprensa, da liberdade de expressão, da imunidade parlamentar para cortar os pulsos da democracia, a democracia vai morrer por assassinato, e esses direitos vão morrer por suicídio. Porque eles não existirão mais se a democracia for varrida do mapa.
Correio Braziliense