Foto: Ricardo Stuckert/Divulgação
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva deu ao Itamaraty a missão de propagandear que o Brasil estaria de volta ao plano internacional, após anos de isolacionismo no governo Jair Bolsonaro (PL). O petista, porém, encontra agora um cenário internacional mais dividido e hostil aos interesses brasileiros. A determinação de estabelecer conexões simultâneas com Estados Unidos, China e Europa, e reposicionar a autonomia do Brasil foram comprometidas por declarações de Lula, alvo de críticas de americanos e europeus.
Embora indiquem entusiasmo com a reorientação na política externa brasileira, EUA e União Europeia fazem duras críticas às falas do presidente brasileiro sobre a Guerra na Ucrânia que, segundo analistas, coloca em xeque a neutralidade da diplomacia brasileira e dá sinais de que o Brasil “toma um lado” na disputa.
Integrantes do Itamaraty alinhados ao chanceler, Mauro Vieira, afirmam que o esforço do governo é de recompor os canais de diálogo com os principais parceiros, de maneira pragmática, o que explica a viagem aos EUA e à China, a despeito da disputa por hegemonia entre as duas superpotências. Vieira teve mais de 75 encontros bilaterais com 52 chanceleres desde que assumiu o cargo.
Sobre a guerra na Ucrânia, diplomatas sustentam que o Brasil optou por uma “atitude propositiva” de buscar parceiros que falem de paz. Ainda de acordo com essa visão, o Brasil não está escolhendo o lado da Rússia. No Ministério das Relações Exteriores argumenta-se que o canal de diálogo está aberto também com a Ucrânia e não está em discussão a posição do Brasil na Organização das Nações Unidas (ONU), de condenar a agressão russa ao território daquele país.
No início do mês, o assessor especial da Presidência Celso Amorim foi à Moscou para um encontro com Vladimir Putin, que enviou ao Brasil nesta segunda-feira, 17, seu chanceler para reuniões na capital federal. Não há nenhuma viagem agendada do governo brasileiro para a Ucrânia ou recepção prevista de ministro ucraniano no Brasil.
Na visão de analistas ouvidos pelo Estadão, Lula reproduz o chavão de seu primeiro mandato de uma política externa “ativa e altiva”, mas encontra um mundo menos hospitaleiro aos interesses brasileiros.
‘Equívoco’
Para o ex-ministro das Relações Exteriores e fundador do Centro Brasileiro de Relações Internacionais (Cebri), Celso Lafer, a visita de Lula à China e aos Estados Unidos é pertinente, mas a atitude do Brasil ao receber o chanceler russo, Serguei Lavrov, não é construtiva e revela um gesto de disponibilidade diplomática à Rússia que o País não concedeu à Ucrânia. “No meu entender é um grande equívoco tanto jurídico quanto político e eu acho que não beneficia o Brasil. É uma acolhida à Rússia, que desencadeou a guerra”, afirmou.
Segundo ele, a postura do Brasil diante do conflito vai contra a história do capital diplomático do País. “Neutralidade não quer dizer impassibilidade, quer dizer imparcialidade”, disse, citando Rui Barbosa. “E não há imparcialidade quando estamos confrontados com uma ilícita guerra de conquista”, completou. “O risco do pragmatismo é a seletividade. E o risco da seletividade compromete a coerência da política externa.”
Ex-embaixador do Brasil nos EUA e na China e conselheiro do Centro Brasileiro de Relações Internacionais (Cebri), Roberto Abdenur diz que o governo revela uma postura de conivência com a Rússia, que prejudica não apenas a relação do Brasil com parceiros estratégicos do Ocidente, como mina a campanha brasileira de obter um lugar no Conselho de Segurança das Nações Unidas. “Mostra falta de elementos fundamentais em política externa: objetividade, realismo e moderação na avaliação do que está acontecendo para tomar posições adequadas e ajustar conforme a evolução da situação.”
Segundo o cientista político da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP) Rodrigo Gallo o governo tenta retomar os parâmetros da política externa firmada nas gestões passadas, quando buscou parcerias para além do hemisfério norte. “É evidente que qualquer aproximação com a Rússia num momento de conflito pode gerar ruídos, e falar em negociar com a China em moeda ‘local’ dos BRICS também envolve atritos diplomáticos com os Estados Unidos. De qualquer forma, é um modo de buscar parcerias com atores do sul global.”
Neutralidade
O professor da Fundação Getúlio Vargas (FGV) Guilherme Casarões vê dificuldade do governo em se manter neutro diante do conflito, já que se confronta com um mundo dividido entre Estados Unidos e China, ao mesmo tempo em que quer preservar as relações com os dois países. “Lula deixa escapar assimetrias falsas de que a guerra interessa tanto à Ucrânia quanto à Rússia. O máximo que conseguiu foi fazer uma oferta construtiva dentro de um contexto que não é favorável para o Brasil se posicionar”, disse.
O risco dos acenos à Rússia é de o Brasil se afastar da tradição de não-intervenção e de defesa da autodeterminação dos povos, avalia o professor de Teoria Política da Unesp Marco Aurélio Nogueira. “É uma política externa que está tentando encontrar um eixo, mas o eixo apresentado até agora é precário, e sobretudo muito arriscado porque pode colocar a política externa brasileira em uma linha de litígio contra políticas externas que são tradicionalmente convergentes com a nossa.”
Agenda multilateral
A reativação das discussões multilaterais é um dos pontos avaliados como propositivos na atual diplomacia brasileira. De acordo com a pesquisadora pós-doutora na University of Oxford Laura Waisbich o governo reconstrói parcerias estratégicas e apresenta pautas temáticas em fóruns internacionais. “Parte da agenda Lula 3 é de retomar essa participação ativa nos fóruns multilaterais, que são vários. Há um esforço de retomada. O Brasil historicamente tem participação em meio ambiente, desenvolvimento e segurança”, afirmou.
No entanto, a posição brasileira no conflito pode prejudicar a credibilidade do País nesta articulação multilateral em favor dos direitos humanos, afirma Bruna Santos, diretora do Brazil Institute do Wilson Center, think thank baseado em Washington. “O Brasil tem esse lastro de defesa dos direitos humanos nos organismos multilaterais e perdemos credibilidade inclusive nesses fóruns”, afirmou.
“A percepção de que o Lula não é um agente neutro está dada, está gerando tensão e insatisfação nos atores tanto europeus como americanos e, de maneira geral, o tom que ele está dando é de que ele está com as ideias se inclinando não na neutralidade e equidistância, mas para um diálogo que está aproximando ele mais da China do que dos EUA nesse diálogo”, disse. Segundo ela, Lula, ao concentrar declarações na questão da Ucrânia, “perdeu a oportunidade” de construir uma pauta positiva a partir do encontro com Xi Jinping.
Gustavo Queiroz e Beatriz Bulla/Estadão Conteúdo
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