Cidades são suspeitas de criar turmas fantasma de alunos para desviar verba da educação

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Dezenas de cidades do país podem estar recebendo mais recursos públicos do que deveriam por meio de matrículas fantasmas em cursos de EJA (Ensino de Jovem e Adulto). A suspeita é que os municípios aumentaram artificialmente o número de estudantes nesta etapa para conseguir mais verbas federais.

A Folha identificou 108 cidades que tiveram grande variação na quantidade de matrículas no programa de 2021 a 2022 e que informaram ter mais de 10% da sua população na modalidade.

Num município de Alagoas, a Prefeitura sorteou três motos para incentivar o cadastro de alunos, mas muitos não vão às aulas. Em uma cidade da Bahia que tem 20% de sua população matriculada no EJA, a verba do programa já representa metade das receitas locais. Procuradas, a maioria das prefeituras negou irregularidades.

O caso envolve as disputas por verbas do Fundeb (Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação), que é financiado por um cesto de impostos.

Os recursos do fundo são distribuídos para estados e municípios de acordo com a quantidade e tipo de matrículas em cada localidade. Assim, se uma cidade aumentar de maneira artificial o número de alunos, vai conseguir receber mais dinheiro, prejudicando outras.

A única exigência para a verba recebida via Fundeb é que 60% do total sejam utilizados para pagar o salário de professores. Além disso, os valores não podem ser usados para pagar merenda escolar e para remunerar profissionais da Educação em desvio de função.

As 108 cidades com grande variação informaram ao governo federal ter tido um crescimento médio de 14,4% nas matrículas de EJA de 2021 para 2022, sendo que no país como um todo teve uma queda de 6,3% no período.

Com isso, elas receberam quase R$ 1,2 bilhão a mais do que teriam se a situação informada fosse similar à tendência nacional.

A quase totalidade dessas cidades está no Mapa de Risco do Inep (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira, ligado ao Ministério da Educação), indicador que agrega 520 cidades em que há indícios de problemas nas declarações feitas ao Censo Escolar.

O presidente do Inep, Manuel Palacios, afirmou que quando são detectadas grandes discrepâncias nas informações os casos deixam de figurar como suspeitos de erro de preenchimento e “entram na esfera criminal”.

Procurado, o Ministério da Educação disse que as denúncias são tratadas e investigadas. “Isso não significa a ausência de falhas. São mais de 5.500 sistemas de ensino compartilhando um fundo de financiamento. Mas é preciso ter em conta que o Brasil produziu uma belíssima arquitetura institucional de financiamento da Educação”.

A reportagem visitou em agosto três das cidades com variações suspeitas na quantidade de alunos.

Uma delas é Novo Triunfo (BA), que tem 10.660 habitantes e 2.151 matrículas no EJA, ou seja, 20% da sua população. Um salto em relação a 2020, quando tinha 30 alunos na modalidade.

Com isso, elevou sua verba para uma projeção de R$ 30,4 milhões, o que representa cerca de metade das receitas do município.

Nos períodos em que visitou as três escolas municipais da cidade, a Folha não encontrou movimentação de alunos do EJA que tenha chegado perto dos números informados ao Ministério da Educação.

Na maior escola da cidade em número de matrícula de jovens e adultos em 2022, a Maria Simões, havia presença apenas de alunos de ensino fundamental ensaiando para o desfile do 7 de Setembro, mas não turmas do EJA —pelos números informados, deveria haver 315 alunos.

De acordo com a diretora da escola, Liliane Moreira, a unidade estava sem aulas porque os alunos estavam trabalhando na colheita.

Funcionários dessa escola e da segunda maior da cidade na área urbana (253 matrículas), a Tia Arcanja, relataram, sob condição de anonimato, que a média de alunos do EJA em cada escola é de 80 alunos, bem abaixo do que foi informado no Censo Escolar.

Procuradas, a prefeitura e a Secretaria de Educação não responderam aos questionamentos da reportagem.

Já a cidade alagoana de Maravilha tem um terço de sua população inscrita no EJA, de acordo com os registros oficiais —3.071 pessoas de um tota de 9.500 habitantes.

De acordo com relatos colhidos na cidade, todos na condição de anonimato, muitos dos alunos não assistiram a nenhuma aula.

A Secretaria de Educação da cidade paga uma bolsa para estimular a permanência no EJA e organizou o sorteio de três motos no início do ano passado para estimular a população a informar nome e CPF, passos necessários para a matrícula no programa.

A cidade é comandada por um clã político influente em Alagoas. A prefeita, Maria da Conceição de Albuquerque, é irmã do deputado estadual Antonio de Albuquerque (Republicanos), que está no parlamento estadual há oito mandatos. Outra irmã, Rosa de Albuquerque, é conselheira do Tribunal de Contas.

Um dos filhos de Antonio, Nivaldo Albuquerque (Republicanos), foi deputado federal entre 2018 e 2022. Outro, Arthur Albuquerque, (Republicanos), foi candidato a vice-governador na chapa de Rui Palmeira (PSD).

A prefeita não quis responder aos questionamentos e indicou a secretária de Educação da cidade, Adriana Paulino. Ela negou que o sorteio de motos tenha sido uma tentativa de inflar artificialmente as matrículas. “[Foi] uma forma de valorizar as matrículas de todas as etapas e modalidades de ensino realizadas na rede pública municipal”, disse.

“Todos os pagamentos de bolsa de auxílio permanência para os estudantes da educação de jovens, adultos e idosos são realizados sob análise e garantia dos requisitos previstos na lei municipal, não ocorrendo a possibilidade de pessoas receberem sem a matrícula na rede e sem a participação efetiva em sala de aula”.

O sorteio não foi realizado novamente em 2023 e com isso o número de matrículas caiu para 1.500 este ano, em números preliminares.

A reportagem localizou pessoas inscritas pela cidade, mas que dizem não frequentar as aulas.

Um casal da zona rural da cidade se matriculou no EJA no início deste ano, por exemplo, mas afirma não ter ido a nenhuma aula. Em outro relato, a mãe de uma professora também disse que está matriculada sem nunca ter frequentado o curso.

Apesar disso, ambos receberam a bolsa permanência criada pela prefeitura em julho, que paga R$ 50 a cada pessoa pela matrícula, mais R$ 100 por mês.

A reportagem visitou duas escolas da zona urbana da cidade e conversou com integrantes da diretoria de ambas. Uma servidora afirmou que a cidade como um todo tem cerca de 400 alunos regulares de EJA, número bem distante dos 1.500 declarados ao Inep.

A coordenadora do EJA em outra escola, Vandilma Silva, disse que o número de matriculados reais no local onde trabalha era menor ainda, 173 matrículas, mas que somente 40 compareciam às aulas regularmente. A reportagem contou 32 alunos entrando na escola quando esteve lá.

MINISTÉRIO PÚBLICO DISSE TER DETECTADO QUASE 10 MIL ALUNOS FANTASMAS EM PE

O MPF (Ministério Público Federal) moveu no ano passado uma ação que levou a cidade de Custódia (PE) a depositar em juízo cerca de R$ 35 milhões, pouco mais da metade do orçamento do município. Segundo a ação, a teria aumentado de maneira artificial a quantidade de alunos no EJA para conseguir mais verbas.

Com isso, segundo a petição dos procuradores, houve a criação de “um amplo cabide de empregos para professores sem capacitação mínima, contratos sem impessoalidade, por meio de indicação política ou com base em arregimentação de alunos, e que não exerciam regularmente suas funções letivas”.

Em 2021, o Inep realizou uma visita ao município, e excluiu 8.779 das 9.500 matrículas de EJA da cidade, reduzindo o contingente de alunos para 739.

Apesar disso, há indícios de que a situação continue. No ano passado, foram 4.100 matrículas, ou 11% da população da cidade, que é de 37,7 mil pessoas. Em 2023, são 3.400 matrículas.

Uma professora, que não se identificou com medo de ser punida pela administração local, relatou que no meio do ano passado recebeu uma lista da prefeitura com 60 alunos, dos quais somente 19 foram localizados e 13 frequentaram as aulas.

No fim do ano letivo, ela diz ter sido obrigada pela direção a fazer uma caderneta aprovando os 60 alunos da listagem original.

Há na cidade um quilombo chamado Buenos Aires. Nele estão duas escolas que juntas deveriam ter mais de 1.500 alunos de EJA. Na noite em que a reportagem esteve lá, as duas unidades estavam fechadas apesar de ser um horário de aula.

A reportagem conversou com duas mulheres que estavam matriculadas no curso, mas disseram nunca ter frequentado nenhuma aula.

Sob anonimato, elas disseram ter sido procuradas por professores de EJA para se matricularem em troca de cestas básicas mensais que seriam dadas mesmo se elas não fossem às aulas.

Elas receberam somente uma cesta com alimentos estragados, afirmam.

O secretário de Educação de Custódia, Alysson de Yolanda, disse que na cidade “não tem nenhum caso de alunos fictícios” e que desconhece suspeitas nesse sentido.

Lucas Marchesini/Folhapress

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