Os ataques de apoiadores de Donald Trump ao Capitólio, em 6 de janeiro de 2021 nos Estados Unidos, fizeram o inquérito das milícias digitais ser pensado como uma espécie de anteparo para as investidas golpistas de Jair Bolsonaro (PL) no Brasil.
Agora o ex-presidente é colocado pela investigação como líder de uma organização criminosa que planejou um golpe de Estado para se manter no poder.
À época dos ataques dos trumpistas, a investigação no Brasil ainda era chamada de inquérito dos atos antidemocráticos e caminhava com dificuldade por causa da inação de Augusto Aras, o procurador-geral da República indicado por Bolsonaro.
Três anos depois, o ministro Alexandre de Moraes, do STF (Supremo Tribunal Federal), autorizou apreensão do passaporte do ex-presidente e buscas contra figuras graúdas das Forças Armadas, expondo os bastidores da escalada golpista que pretendia manter Bolsonaro na Presidência mesmo após a derrota nas urnas para Lula (PT).
Até chegar a esse ponto, a investigação passou por percalços dentro da Polícia Federal e evidenciou excessos de Moraes, como no caso das buscas contra empresários às vésperas da eleição de 2022, mas é considerada o inquérito mais robusto dos vários relatados pelo ministro e que miram Bolsonaro e seus aliados.
Esse inquérito, aliás, é um bom exemplo sobre a falta de alinhamento entre Aras e Moraes. A situação não tem se repetido após a posse de Paulo Gonet, indicado por Lula. O atual PGR encampou todos os pedidos feitos pela PF e que originaram a operação Tempus Veritati, deflagrada na quinta (8).
A antigo inquérito dos atos antidemocráticos teve início em abril de 2020 a pedido do próprio Aras, após Bolsonaro participar de ato em frente ao quartel-general de Brasília que pedia intervenção militar.
Em junho do ano seguinte, após o caso começar a avançar em direção a pessoas próximas a Bolsonaro, Aras pediu o arquivamento do inquérito perante o STF.
Moraes fingiu que não viu o pedido, deu um drible na PGR e ordenou a abertura de outra investigação, com o mesmo material angariado na apuração anterior —que passou a ser chamada de inquéritos das milícias digitais.
Nesse cenário, a então delegada titular do caso na PF, Denisse Ribeiro, passou a organizar na investigação das milícias digitais toda a apuração sobre o entorno de Bolsonaro e seus aliados.
No entendimento da delegada, a organização criminosa alvo da apuração era responsável por todos os eventos da escalada golpista, que tinha começado em 2020, passado pela campanha de desinformação durante a pandemia e desembocado nos ataques ao sistema eleitoral em julho de 2021.
A investigadora, que desde o início do caso também acompanhava como a inspiração americana do bolsonarismo se movimentava, identificou um padrão semelhante nos dois países.
Assim como nos EUA, o grupo político inflava suas bases por meio da disseminação de desinformação, lucrava financeiramente e politicamente com isso, e —o mais importante— sinalizava estar disposto a usar qualquer meio para se manter no poder.
Para se preparar para segurar a escalda golpista, a delegada passou a enviar todos os casos que Moraes abria para dentro da investigação, classificando-os como eventos praticadas por uma mesma organização criminosa que se estabelecia em forma de milícia digital.
Denisse saiu da apuração no início de 2022 por causa de uma licença e deixou em seu lugar o delegado Fabio Shor, que manteve o entendimento anterior e avançou nas investigações, principalmente, a partir da quebra do sigilo telemático de Mauro Cid, ex-ajudante de ordens de Bolsonaro.
Antes de sair, no entanto, a delegada entregou a Moraes um relatório parcial em que já apontava para Bolsonaro e tinha elementos sobre a atuação do governo contra as urnas eletrônicas. A delegada havia investigado a live de 29 de julho de 2021 e o vazamento do inquérito sobre ataque hacker ao TSE (Tribunal Superior Eleitoral), em 4 de agosto daquele ano.
Foi no caso do vazamento do inquérito que Mauro Cid, agora delator, teve seu sigilo telemático quebrado, garantindo à PF acesso a conversas e informações sobre o dia a dia do governo e do próprio Bolsonaro.
Nos dois casos, estavam as digitais dos mesmos nomes que agora estão na mira de Moraes pelo planejamento do golpe após a derrota eleitoral para Lula.
Anderson Torres, então ministro da Justiça, já era investigado. O general Augusto Heleno, à época chefe do Gabinete de Segurança Institucional, estava na mira por causa da atuação irregular da Abin (Agência Brasileira de Inteligência), e os militares começaram a aparecer como os que levantaram as suspeitas contra as urnas.
Em fevereiro de 2022 a investigação apontava que o inquérito das milícias digitais era o “principal anteparo contra possíveis investidas antidemocráticas dos apoiadores do presidente no ano eleitoral”.
Ao longo de 2022, já sob novo comando, a investigação foi incluindo ainda mais eventos para serem apurados. A lista inclui os ataques às urnas, o uso das Forças Armadas para legitimar a tentativa de tumultuar o pleito e as suspeitas de desvio de dinheiro da ajudância de ordens, entre outros casos.
Alguns deles são investigados em inquéritos separados, como a atuação da PRF (Polícia Rodoviária Federal) nas eleições.
Atualmente, o inquérito das milícias tem cinco linhas de apuração: ataques virtuais a opositores, ataques às instituições e às urnas eletrônicas, tentativa de golpe de Estado, ataques às vacinas e medidas na pandemia e, por último, o uso de estruturas do Estado para obtenção de vantagens indevidas.
Com a operação da última quinta, a PF sinaliza que a investigação sobre a tentativa de golpe caminha para o fim. Resta agora encerrar o caso sobre as joias e as transações suspeitas no gabinete da Presidência e indicar qual a participação de Bolsonaro no 8 de janeiro, a versão brasileira da invasão ao Capitólio.
Fabio Serapião/Matheus Teixeira/Folhapress/Foto: Marcos Corrêa/PR/Arquivo
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