Para muitos fazendeiros, agricultores familiares e reassentados pela Chesf, tanto do lado baiano quanto da margem pernambucana do rio São Francisco, a presença de “seu Né” em suas propriedades significa a esperança de matar a sede dos rebanhos e das plantas.
Há quem mande carro com motorista até Brejo do Burgo, um povoado de pouco mais de 100 casas no município de Glória, só para apanhar e deixá-lo em casa, depois que ele faz o serviço: indicar o local certo onde escavar os poços e garantir água.
Reportagem do site Marco Zero destaca que Há mais de seis décadas ele percorre os sertões com gravetos em forma de forquilha ou arames de metal torcidos no formato da letra “e” minúscula. Estes instrumentos simples, toscos até, bastam para que ele identifique quais os pontos, sob o solo da caatinga, onde há água suficiente para viabilizar uma lavoura. Ele tem o dom da radiestesia, a suposta habilidade de perceber o campo eletromagnético dos depósitos subterrâneos de água.
Usamos a palavra “suposta” porque a ciência não comprova se isso é realmente possível. Mas quem contrata seu Né está mais interessado nos resultados práticos do que nas verdades científicas.
Seu nome completo é Manoel Batista da Silva e está com 89 anos. No entanto, mesmo em Brejo da Burgo, poucos o chamam dessa maneira.
Ele nos recebeu em seu sítio, a seis quilómetros do povoado, em pleno Raso da Catarina, uma planície arenosa no norte da Bahia onde caminhar é tão cansativo como na areia fofa da praia. Sozinho, cuidando de um rebanho de aproximadamente 50 cabeças de gado sob um sol do sertão, demonstra uma disposição para o trabalho braçal incompatível com sua idade. No entanto, ao saber que nossa intenção era entrevistá-lo, ele parou o que estava fazendo. O gosto pela conversa, este sim, é totalmente compatível com a de um idoso com muitas histórias para contar.
Nesta foto vê-se uma mão enrugada e suja segurando um bastão. A pessoa está vestindo uma roupa branca, que parece estar um pouco suja. O foco principal está na mão e no bastão, com o fundo desfocado. As unhas da pessoa estão curtas e parecem estar sujas. A textura da pele é visível, indicando trabalho árduo ou idade avançada.
Seu Né diz que seus nervos “sentem” a água no subsolo.
“Posso até ter errado algum poço, mas nunca tomei conhecimento disso, não”, garante, sem nenhuma sombra de falsa modéstia.
No final do século passado, seu Né ainda usava gravetos ou arames que se curvavam em direção ao ponto onde há água. Hoje, ele dispensa esses recursos. “Eu sinto a água, meus nervos sentem, não sei porque nem como isso acontece, só sei que nasci com o dom”. Em novembro, alguns dias antes da entrevista, ele conta que foi levado pelos agricultores de Salgado do Melão, um povoado do município de Macururé, e “locou” – termo que usa para dizer que localizou – 14 poços em reassentamentos da Chesf. “Só quiseram cavar três, deixaram os outros de reserva”, explica, detalhando como funciona sua atividade.
Por cada poço ele cobra R$ 500, mas nem sempre foi assim. Durante os anos em que atuou como sindicalista, ele se recusava a cobrar, pois exercia o cargo de diretor de Convivência com o Semiárido do Pólo Sindical do Vale do São Francisco, uma articulação de dezenas de sindicatos de trabalhadores rurais da Bahia, Pernambuco, Alagoas e Sergipe. Ele considerava que fazia parte de sua missão “locar” poços e treinar outros “caçadores de água” com ajuda das organizações não-governamentais que atuam no semiárido e que, durante a COP-3, criaram a Articulação do Semiárido (ASA).
Ele só perdeu a energia para caçar poços d’água nos anos que se seguiram à morte de sua esposa. “Foi uma tragédia na minha vida, homem sem mulher é uma tristeza. Não tinha vontade pra mais nada”, explica. O que o salvou foram os sucessivos chamados de agricultores para encontrar fontes de água, necessidade que só aumenta por causa da piora das condições climáticas da região e a consequente desertificação.
Segundo ele, a necessidade de locar poços está cada vez maior porque rios, lagoas e açudes que, antes passavam alguns meses do ano com água, agora estão permanentemente secos, como é o caso da Lagoa do Brejo, vizinha a Brejo do Burgo.
“Estão desmatando tudo, estão tirando as árvores que seguram a água e chamam a chuva como o pau d’arco e o pereiro. A caatinga tá pelada, sem nada por cima, desprotegida”, lamenta seu Né. Ele não tem dúvidas que é por isso que as coisas estão se tornando mais difíceis no semiárido: “Sei o que digo, eu ainda estou em mim”.
No sítio, seu Né só consegue manter seu rebanho em pé por causa da água de dois poços que encontrou e perfurou, um deles com 94 metros de profundidade e botando água pura há mais de 25 anos. Ele faz as próprias refeições em uma palhoça que abriga também a bomba do poço, pois a pequena casa, construída no alto de uma elevação do terreno só tem estrutura para a dormida.
Esse poço é a minha felicidade. No fim de tarde, eu chamo todo mundo pra beber água”, afirma. Por “todo mundo” ele se refere aos bois, vacas e novilhos. “Cuidar de gado pra mim é um entretenimento. Aliás, cuidar de bicho e conversar, quando quiserem ouvir minhas histórias, podem vir”, convida, oferecendo a água para a equipe de reportagem matar a sede e amenizar os efeitos do calor.
Marco Zero