Recentemente eu participei de um seminário sobre jornalismo ambiental no Rio de Janeiro, organizado pelo site O Eco. Para encerrar o debate, a mediadora da nossa mesa, Duda Menegassi, pediu que cada debatedor deixasse uma mensagem final para os jovens jornalistas que estavam na plateia, interessados em seguir carreira no jornalismo ambiental. Falei a primeira coisa que me veio à cabeça: “Preparem-se para uma guerra”.
Foi uma resposta genuinamente espontânea, sem ensaios. É uma pena que tenha sido assim, mas é uma realidade que se impõe. Estamos, literalmente, numa guerra pelo futuro da espécie humana no planeta. Uma guerra ferrenha contra inimigos que nós mesmos criamos: as mudanças climáticas, a perda de biodiversidade e a degradação acelerada de praticamente todos os ecossistemas naturais dos quais dependemos para a nossa própria sobrevivência. Do oceano profundo à alta atmosfera, passando pelas florestas, savanas, rios, campos, desertos, montanhas, cidades, pastos e plantações, não há ambiente nesse planeta que não esteja sendo deteriorado ou ameaçado de destruição pela ação humana.
A conta dessa catástrofe ambiental já está sendo cobrada, e o preço a pagar é altíssimo, tanto em dinheiro quanto em vidas humanas. Não precisa ser cientista para perceber que os eventos climáticos extremos — tempestades, secas, enchentes, ondas de calor etc. — estão ficando cada vez mais frequentes e mais intensos ao redor do mundo. E se preparem, porque essa história está só começando… A previsão dos cientistas é que esse cenário ainda vai piorar — e muito — daqui para a frente, a não ser que tomemos medidas urgentes para mudar essa trajetória catastrófica de mudanças climáticas extremas, extinções em massa e devastação ambiental generalizada que estamos trilhando agora.
Esqueça aquela imagem clássica do urso polar se equilibrando sobre um pedaço de gelo semiderretido no Ártico. O que está em jogo aqui é muito mais do que isso: é a água que bebemos, o ar que respiramos, o alimento que comemos e a terra em que vivemos.
Basta ver o que aconteceu com as enchentes no Rio Grande do Sul ou o que está acontecendo com as queimadas no Pantanal, na Amazônia, e com as cidades cobertas de fumaça Brasil afora; só para citar alguns exemplos mais recentes. Se o calor escaldante e a poluição sufocante deste inverno ainda não foram suficientes para te convencer de que estamos num caminho muito errado, pode parar de ler esse texto agora mesmo e boa sorte pra você.
A crise ambiental global não é um problema só dos (outros) bichos e das plantas; é um problema nosso! Os impactos na economia, na saúde, na segurança hídrica, na segurança alimentar e na segurança energética já são enormes e vão se tornar ainda mais devastadores nas próximas décadas. Ou você acha que a produção de alimentos não vai ser afetada por isso?
Isso significa que seremos extintos? Que a espécie humana vai deixar de existir? Não. Mas é fato que muita gente vai sofrer e vai morrer nessa guerra — afogada em enchentes, soterrada por deslizamentos, de doenças respiratórias e infecciosas, de calor, de fome, de sede, de frio. Um relatório da Organização Meteorológica Mundial estima que eventos climáticos extremos mataram mais de dois milhões de pessoas e causaram um prejuízo superior a US$ 3,6 trilhões no período de 1970 a 2019.
Os mais pobres, é claro, serão sempre os mais afetados e injustiçados. Milhões de pessoas terão que se mudar de áreas que serão progressivamente inundadas pela elevação do nível do mar ou que vão se tornar quentes demais — ou secas demais, ou frias demais — para serem habitadas. (Centenas de cidades brasileiras ficaram mais secas do que o Deserto do Saara no início de setembro, e as previsões indicam que o Nordeste está a caminho de se tornar uma região árida, bem mais seca do que já é atualmente.) Casas serão inundadas, negócios serão destruídos, vai faltar energia, plantações serão perdidas, alimentos ficarão mais caros, a água ficará ainda mais escassa.
O jornalismo científico e ambiental ocupa uma das principais trincheiras dessa guerra, no sentido de que informações de qualidade são fundamentais para alertar a sociedade sobre as ameaças que se impõem e as consequências de não confrontá-las com a urgência e a eficácia necessárias. Não só o jornalismo stricto sensu, produzido por veículos de imprensa, mas todas as formas de comunicação voltadas à temática científica e ambiental, incluindo canais e veículos de divulgação científica nas redes sociais — sejam eles de caráter individual ou institucional. As instituições públicas de ensino e pesquisa, aliás, podem e precisam contribuir muito mais nesse esforço, colaborando com o trabalho da imprensa, incentivando a divulgação científica e investindo na produção de canais e conteúdos próprios de comunicação com a sociedade.
As frentes de batalha são muitas, e nenhum jornalista ou veículo de comunicação vai dar conta de desarmar essa bomba atômica sozinho. Do outro lado dessa trincheira está um exército de pessoas e robôs empenhados em espalhar desinformação numa escala nunca antes vista na história da comunicação; que obriga a sociedade a navegar diariamente por um campo minado de mentiras e teorias conspiratórias — segundo as quais o problema não existe, não é tão grave, não é causado por nós ou é uma invenção da esquerda para destruir o agronegócio brasileiro. Tudo mentira.
É uma batalha desleal, em que o jornalismo está em franca desvantagem, pelo fato de ter que dizer a verdade; enquanto os propagadores de desinformação têm um cardápio infindável de narrativas e “fatos alternativos” à sua disposição para contar a história que quiserem, do jeito que quiserem, com os argumentos que quiserem, por mais ridículos ou inverídicos que sejam. A verdade é frequentemente complexa e desconfortável. A mentira é quase sempre simples e reconfortante, o que a torna — infelizmente — muito mais eficiente do ponto de vista da comunicação. Afinal de contas, é muito mais fácil acreditar numa mentira conveniente do que encarar uma realidade inconveniente. Os propagadores de desinformação sabem e se aproveitam disso.
Por trás desse exército de mentirosos estão as diversas forças políticas e econômicas que financiam essa desinformação e que lucram — financeira e/ou politicamente — com a manutenção do status quo.
É a galera que quer deixar tudo como está; que quer continuar queimando petróleo, derrubando florestas, tocando fogo no Cerrado, jogando esgoto nos rios, despejando lixo no oceano, desperdiçando água, ocupando praias, soterrando manguezais, abusando dos agrotóxicos, poluindo o ar e estimulando o consumo exagerado de tudo que você possa imaginar. No fundo do abismo, esses são os verdadeiros inimigos. A crise ambiental não é causa, ela é consequência. A raiz do problema não é ambiental, é econômica, política e social.
A estratégia da desinformação moderna é, essencialmente, a mesma usada pela indústria do tabaco no passado para contestar evidências de que fumar fazia mal à saúde: financiar estudos de má qualidade que supostamente descartam esses malefícios, recrutar personalidades, médicos e cientistas inescrupulosos para se colocarem a favor dela e financiar campanhas publicitárias enganosas para lançar uma luz positiva sobre seus produtos.
Lamentavelmente, ainda hoje há alguns “cientistas” (digo, pessoas que receberam uma formação científica, mas que não honram esse título), jornalistas, políticos e personalidades que se rendem (se vendem?) a esse lado negacionista da força. Eles não podem vencer, pelo bem da humanidade.
Herton Escobar, jornalista especializado em Ciência e Meio Ambiente e repórter especial do “Jornal da USP”
Jornal da USP