Samba de Véio do Rodeadouro: manifestação cultural celebra a ancestralidade da comunidade ribeirinha

Cidades Juazeiro

O samba nasceu na Bahia, a partir da mistura de ritmos africanos. Em sua versão original, longe dos traquejos das escolas que desfilam na sapucaí, os pés dos sambistas batem com força no chão e logo voltam ao ar. O movimento é repetido em uma velocidade incalculável. As palmas batem e saias floridas rodopiam, tudo em volta de um círculo, com uma dupla dançante no centro. É parecido no ‘Samba de Roda’, que nasceu no Recôncavo da Bahia, e é assim no ‘Samba de Véio’, uma manifestação cultural ribeirinha que faz parte das raízes do município baiano de Juazeiro – mais especificamente, da comunidade do Rodeadouro.

Como começou

O Rodeadouro repousa nas curvas do Rio São Francisco, a 13 quilômetros da sede do município. Inclusive, os antigos contam que o nome surgiu das inúmeras voltas – ou “rodeios” – que as embarcações precisavam fazer para alcançar a terra firme. Ainda hoje, os moradores mais velhos guardam a lembrança do seu nome original: “Rodeador”.

De origem afro-brasileira, a comunidade foi certificada em 2018 como remanescente de quilombo pela Fundação Cultural Palmares. Essas raízes se misturam com a religião católica, formando o que é a história do samba da região.

De tradição oral, o Samba de Véio tem origem desconhecida. Acredita-se que tenha surgido há mais de 200 anos, nas antigas casas de farinha, locais onde eram fabricados subprodutos da macaxeira. Por lá, as músicas eram cantaroladas pelos trabalhadores enquanto moíam a mandioca e faziam suas atividades.

“A gente não tem ideia de como começou. Mas como os mais velhos falavam, como aqui era um quilombo, os negros vieram e o modo deles de se divertir era uma roda de samba. A gente tem ideia de que começou daí e os mais velhos foram continuando. Foi resgatado mais tarde nas casas de farinha”, conta a moradora do Rodeadouro e sambista Marlene de Sena Silva.

As cantorias também tinham relação com os reisados, ou Folia dos Reis, tornando-se uma atividade única com o tempo. Depois que acontecia a folia, os sambistas visitam as casas das pessoas e perguntavam: “samba ou lamba?”, daí em diante era hora de ver a poeira subir.

“Do reisado, partia para o samba. Cantavam o reisado e, se a pessoa quisesse, sambava naquela casa”, conta dona Ovídia Izabel de Sena, uma das moradoras mais antigas da comunidade.

“Se o dono dizia ‘samba’, daí a gente sambava. Só saía de lá depois que comia o bode. Mas agora não é mais assim”, conta Suelí Maria de Sena.

Os instrumentos e os passos

Por falar em bode, o compasso das batidas é entoado por um tambor que só existe nas margens do Velho Chico: feito com tamborete e pele de caprinos. Além das batidas, os sons são guiados pelo triângulo e o pandeiro, formando um trio de instrumentos.

Já a dança é envolvente, com os pés firmes no chão e giros. Entre os passos, há um icônico convite: a umbigada. Nesse movimento, a pessoa do centro da roda convida outra à dança, encostando as suas barrigas.

“A história não se sabe, só que a gente se acostumou dançando assim. A gente samba dali, aí a gente vai lá, dá uma umbigada e puxa a pessoa para dentro da roda”, explica Suelí. Embora não se conheça totalmente esse histórico, é importante mencionar que a própria palavra “samba”, dizem, vem de “semba”, expressão angolana que significa, justamente, “umbigada”.

E em se tratando de etimologia, uma dúvida comum de quem conhece a tradição é saber o motivo dela se chamar samba “de véio”. A resposta é fácil, segundo Marlene. “É porque antigamente só podia sambar as pessoas com idade. Criança não sambava e nem jovem, porque envolvia bebida alcoólica. E o motivo da gente, algumas vezes, sambar com a garrafa na cabeça é para simbolizar isso”, diz.

Mas as coisas já mudaram. Passada de geração em geração, a dança envolve hoje, em sua maioria, crianças e adolescentes, que se unem aos mais velhos para celebrar a sua cultura.

Um percurso de resgate

Quem vê o samba hoje não imagina que ele ficou esquecido por alguns anos na comunidade. Aconteceu quando as lideranças que encabeçavam a manifestação partiram para outro plano, até que o samba foi resgatado para nunca mais morrer.

De acordo com o documentarista Márcio Reges, no final da década de 1980, após a morte da líder do grupo, dona Francisca Pereira, houve uma pausa da dança. Mas por meio de uma ação na comunidade realizada nas escolas, pela professora Lucimeire Oliveira, a raiz foi resgatada.

“As primeiras pessoas que foram nos ensinando morreram e acabou o samba. Com o passar do tempo, uma professora se interessou muito pelas culturas da região. Então, alguém falou sobre a cultura do samba e decidimos “vamos resgatar”. Daí fomos criando gosto e criamos o nosso grupo”, conta Suelí.

O festejo passou a integrar todas as festividades, especialmente as de origem religiosa e católica, unindo a comunidade.

“É uma mistura de religiões e culturas. A gente pega algumas coisas da celebração de São José e coloca no samba… por aí vai. Assim fomos misturando”, explica Marlene.

Hoje, todo mês de janeiro, a festa de Reis é marcada pelo samba. Não à toa, o dia 6 de janeiro é instituído como “Dia Municipal do Samba de Véio do povoado do Rodeadouro”. A manifestação também se faz presente no Dia de São José, padroeiro da comunidade, celebrado em 19 de março.

A data é importante para cultura nordestina e, na região, conta com festejos, incluindo uma procissão fluvial, onde o Samba celebra em uma barca própria, além de se apresentar na chegada em terra firme.

Este ano, a festa contou com apoio da Secretaria de Cultura, Turismo e Esportes (Seculte), com o desafio de resgatar a cultura e promover o samba para todas as próximas gerações.

“A gente continua essa tradição, com os mais velhos passando os mais novos. Eu estou com 76 anos, não sou mais criança, mas, graças a Deus, a nossa comunidade tem um grupo de crianças e de adolescentes que estão tomando conta desse movimento”, diz dona Ovídia.

Ascom PMJ

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