Na linguagem própria da inseminação caseira para engravidar, modalidade não prevista pela lei que tem crescido no Brasil, os doadores de sêmen não têm filhos, mas “positivos”. A interpretação é de que não há vínculo entre as crianças geradas pelo esperma doado e os homens que emprestaram seus gametas. O corretor de imóveis Alfredo (nome fictício), de 49 anos, afirma que perdeu as contas de quantos “positivos” acumula depois que o número ultrapassou os três dígitos. Médicos apontam riscos de transmissão de doenças.
Já são mais de cem bebês gerados pelos espermatozoides que ele doou, nas contas do próprio Alfredo, já que não há registro formal ou balanço sobre essas doações. As crianças estão em vários Estados do País – há mulheres que viajam para receber o esperma -, mas a maioria foi gerada em São Paulo, onde ele mora. Em um grupo no Facebook, mulheres que engravidaram com o sêmen doado por Alfredo trocam fotos das crianças. “Elas são parecidas”, diz o corretor.
A inseminação caseira é uma forma de engravidar sem sexo ou ajuda de médicos. O casal busca um doador de sêmen, que faz a coleta do esperma. O material genético é então colocado em uma seringa e injetado no corpo pela mulher que deseja engravidar.
Como mostrou o Estadão, a prática vem aumentando no Brasil, impulsionada pela crise econômica e pelas redes sociais. Cresce, também, o número de casos que vão parar na Justiça e o principal ponto de questionamento é sobre o registro das crianças nascidas nessas condições.
Não há regra que proíba a doação do esperma, mas a cobrança pelo material genético é vetada pelo Conselho Federal de Medicina (CFM). Homens que fazem a doação afirmam só pedir auxílio com custos do deslocamento ou exames solicitados pelos casais antes da inseminação, como testes de HIV e outras doenças sexualmente transmissíveis (DSTs).
O corretor começou a doar sêmen em 2017, depois de ver, em uma rede social, o pedido de um casal de mulheres que não tinha condições de pagar pela fertilização em uma clínica. “Decidi ajudar, o povo ficou ressabiado.” Dali em diante, não parou mais. Segundo Alfredo, ele até tenta se aposentar, mas não consegue. “Não me deixam parar. Vou ajudando até quando posso.”
A conexão entre Alfredo e as mulheres que querem engravidar pela inseminação caseira é feita por meio das redes sociais, onde ele é reconhecido pelas supostas altas taxas de fecundação. Parte das mulheres pede que apresente exames comprovando não ter doenças – em alguns casos basta enviar os laudos que ele já tem; em outros, há o pedido para que refaça os testes.
O corretor afirma não cobrar nada além do custo de deslocamento. O local onde a coleta do sêmen é feita também varia. “Fica a critério. Geralmente, vou até o local da pessoa, em hotel, motel, na residência.” Quando conversou com a reportagem, em uma sexta-feira de julho, Alfredo disse que já tinha um procedimento agendado para o fim de semana.
Quem o procura nas redes sociais recebe um texto que o corretor de imóveis já deixou pronto, explicando como é o procedimento e quais as maiores chances de conseguir a gravidez. Há até quem peça para enviar o sêmen pelos correios – o que ele não faz e, na prática, nem atenderia o objetivo de engravidar ninguém.
Ele pede que as mulheres apenas comuniquem se a inseminação deu certo e diz não esperar vínculo com as crianças. “Às vezes me mandam fotos, agradecendo. É gratificante, mas não tenho contato. Cheguei a conhecer dois positivos e não tive sentimento nenhum, era como se estivesse pegando uma criança qualquer no colo”, diz ele, que é divorciado e tem uma filha.
Alfredo afirma não ter tido problemas, até agora, com pedidos de reconhecimento de paternidade e pensão. Entre parentes e amigos, nem todos sabem o que o corretor faz, muito menos quantos “positivos” afirma ter espalhados pelo Brasil. A mãe dele, sim. “E ela fala que sou louco.” Ele reconhece que pode haver, além da vontade de ajudar, alguma intenção inconsciente de “perpetuar a espécie”. E não descarta um sentimento oculto de “macho alfa” proporcionado pelas doações.
Outros doadores também dizem nas redes acumular número elevado de positivos e fazem sucesso na internet. Um dos mais famosos criou até perfil no TikTok para falar sobre inseminação caseira para mais de 45 mil seguidores. Em meio a dancinhas, ele dá dicas de como calcular o período fértil e fala sobre os maiores medos dos doadores, entre eles, ter de assumir a paternidade.
O fenômeno de doadores com dezenas de positivos ocorre porque mulheres que desejam engravidar acabam buscando homens que já têm experiência e referências de outros casais. O temor é de cair nas mãos de aproveitadores, que sugerem relações sexuais ou cobram pelos gametas.
Relacionamento entre irmãos?
Para Regina Beatriz Tavares da Silva, presidente da Associação de Direito de Família e das Sucessões (ADFAS), essa situação cria o risco de que crianças com o mesmo material genético – irmãs, por parte de pai – se conheçam no futuro e acabem se relacionando. Relações incestuosas, diz Regina, podem causar problemas à saúde dos filhos.
Diferentemente do que ocorre na inseminação caseira, clínicas de reprodução assistida devem ter controle sobre o uso de gametas. “A orientação que a gente tem quando trabalha com banco de gametas doados é que use um doador para cada milhão de habitantes”, explica Pedro Augusto Araújo, vice-presidente da Comissão Nacional de Reprodução Humana da Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo).
Alfredo não descarta a possibilidade de que seus positivos (hoje crianças) se conheçam no futuro, sem saber, mas diz não esquentar a cabeça com isso por enquanto. “Cabe aos pais, às mães, informar que isso pode acontecer futuramente.”
Estadão Conteúdo/Foto: Divulgação