Garimpo retoma força e desnutrição se incorpora à rotina de yanomamis

nacional

Vista facilmente por quem cruza os céus do território yanomami, em Roraima, uma pista de pouso e decolagem suspeita de servir ao garimpo ilegal abriga nove aviões de pequeno porte, dispostos lado a lado, bem perto da exploração ilegal de ouro na maior terra indígena do Brasil. A região é de fronteira com a Venezuela, e as coordenadas apontam para a presença da pista 5 km adentro no país vizinho.

No “garimpo do Rangel”, em território brasileiro, embarcações com garimpeiros trafegam sem incômodo pelas águas sujas e barrentas do rio Couto Magalhães. É fim da tarde de quarta-feira (10), e os barcos também circulam tranquilamente pelo rio Mucajaí, que está imundo.

Garimpos e cicatrizes de garimpos parecem engolir malocas, pequenas aldeias e uma pista de pouso que já serviu à saúde indígena, nas regiões de Homoxi e Xitei. Os rios, como o Uraricoera, voltaram a adquirir a aparência pastosa que é característica da exploração predatória e ilegal de ouro.

Tudo é visto de cima, da janela de um dos três aviões de pequeno porte usados pela comitiva de ministros do governo Lula (PT) em visita à região de Auaris, a mais distante da terra yanomami, na fronteira com a Venezuela.

O garimpo retomou a força em pontos estratégicos do território. A 20 minutos de voo do PEF (Pelotão Especial de Fronteira) do Exército em Auaris, onde pousaram os aviões da comitiva de ministros, dois pontos estratégicos para a logística do ouro ilegal estão em pleno funcionamento.

Maurício Ye’kwana, diretor da Hutukara Associação Yanomami, fez um relato detalhado aos ministros Sônia Guajajara (Povos Indígenas), Marina Silva (Meio Ambiente e Mudança do Clima) e Silvio Almeida (Direitos Humanos), dentro do espaço central da aldeia Fuduuwaadunha, dos ye’kwanas, que também estão na terra yanomami.

“Há um fluxo grande de aviões e helicópteros nos dois pontos logísticos. São 17 aeronaves, que alimentam garimpos no Parima, no Homoxi, em Xitei”, disse Maurício. Davi Kopenawa, que lidera a Hutukara, resumiu assim a retomada de força do garimpo em seu território, num tom de irritação ao se dirigir aos ministros: “Eles são como cupim. Metade foi embora. Os criminosos ficaram.”

No caso da pista de pouso com nove aviões, o governo brasileiro chegou a planejar a destruição das aeronaves, mas teria constatado que a pista está no lado venezuelano.

A reativação de garimpos é um combustível para a crise humanitária dos yanomamis, com impacto no acesso a alimentos e com sucessivos surtos de malária no território. A desnutrição de crianças yanomamis é tão visível quanto a exploração do ouro, e são diretamente proporcionais.

Auaris é, hoje, um dos principais focos da crise de saúde. O acesso a comunidades se dá por meio de voos com duas horas de duração, o que dificulta atendimentos e remoções; o garimpo vem se estendendo à região, sem repressão por órgãos de fiscalização, de segurança e pelas Forças Armadas; há cooptação de indígenas adultos, o que impacta a produção nas roças.

É comum que crianças estejam desnutridas e com malária, ao mesmo tempo, além da alta incidência de doenças oportunistas da fome: pneumonia, diarreia, anemia, verminoses.

Profissionais de saúde consideram que todos os yanomamis da região de Auaris tenham tido malária ao longo de 2023. São 4.000 indígenas. Até novembro, houve 6.917 casos positivos notificados pelo polo base de saúde, conforme dados do COE (Centro de Operação de Emergências) Yanomami, vinculado ao Ministério da Saúde. Em nenhuma outra região houve tanta malária quanto no local.

No começo da tarde da última quarta, sete crianças estavam internadas no polo base com desnutrição –quatro casos graves, e três, moderados.

As crianças e as mães ficam num galpão onde existe um redário. Uma suplementação alimentar por seringa é administrada nos pacientes, numa tentativa de ganho de peso pelas crianças, de forma que se tente evitar a remoção aérea para o Hospital da Criança em Boa Vista. Em 2023, foram mais de mil atendimentos na unidade de saúde.

Uma criança que estava internada na unidade de saúde em Auaris, e que teria entre 12 e 13 anos, pesava 10 kg. Os casos graves eram de indígenas sanumás, um subgrupo yanomami presente principalmente em Auaris.

Os profissionais de saúde que fazem o atendimento a esses pacientes dizem que as famílias perderam o hábito da roça. Dependem das cestas básicas distribuídas pela Funai (Fundação Nacional dos Povos Indígenas).

Nas cestas, há arroz, farinha, leite, charque, sardinha em lata, paçoca de carne e um processado à base de milho, segundo agentes de saúde indígenas. A dieta dos sanumás, antes da dependência às cestas, incluía beiju, banana, peixe e carne de porco do mato, veado e macaco. Segundo um agente de saúde, hoje, quase não há caça nem pesca.

Na Casai (Casa de Saúde Indígena) Yanomami, em Boa Vista, um dos principais fluxos de indígenas é proveniente da região de Auaris. O espaço deveria ser apenas uma casa de acolhimento e passagem, mas faz atendimentos médicos e internações.

Quando o presidente Lula (PT) foi a Boa Vista para anúncio de medidas da emergência em saúde, no primeiro mês de seu terceiro mandato, ele se dirigiu à Casai, e afirmou ser inaceitável a superlotação do lugar. Houve declaração de emergência em saúde na terra yanomami em 20 de janeiro de 2023.

O espaço segue com mais pessoas do que vagas existentes. Até terça (9), havia 276 pacientes e 310 acompanhantes, num total de 586 indígenas. A capacidade da Casai é de 442 redes e 16 leitos. No auge da crise humanitária, quase 900 yanomamis ficavam na Casai, parte deles por meses, sem retornar ao território tradicional.

Galpões são estruturados para abrigar os indígenas, divididos por regiões. O de Auaris era um dos mais lotados na terça, quando a reportagem visitou o lugar.

“O garimpo voltou com tudo e, com isso, a malária voltou com tudo”, afirma a médica ginecologista Ana Paula Pina, que atua no DSEI (Distrito Sanitário Especial Indígena) Yanomami. “Há mães desnutridas crônicas. E a maioria das internações é de crianças desnutridas e com malária”.

No polo base em Auaris, profissionais de saúde encontram dificuldades em administrar a suplementação alimentar nos casos de desnutrição. Mesmo assim, as sete crianças com desnutrição não necessitariam de transferência para Boa Vista, segundo o diagnóstico feito no dia da visita dos ministros.

É comum que indígenas do lado venezuelano procurem a unidade de saúde em Auaris, principalmente por causa de malária, conforme o relato de lideranças da região. O fluxo é de 80 a 100 indígenas, segundo as lideranças.

“A gente está muito ciente de que [a crise] está longe de terminar, está longe para se libertar o território”, disse a ministra Sônia Guajajara, na reunião feita com lideranças em Auaris. “Sabemos que há invasores, que o que fica é a parte criminosa”.

Marina Silva afirmou que o governo quer “a transparência e a realidade”, e não o “autoengano”. “O recado do presidente é para resolver a situação.” Silvio Almeida disse algo semelhante: “Temos a plena ciência de que, apesar do trabalho, ainda não foi o suficiente”.

Na terça, após reunião ministerial convocada pelo presidente, o governo federal anunciou a presença de uma “casa de governo” em Roraima para tratar das ações na terra yanomami e a instalação de três bases de vigilância no território, com forças de segurança como PF (Polícia Federal) e Forças Armadas. Os gastos previstos são de R$ 1,2 bilhão.

Lula se mostrou incomodado com os dados de saúde. O relatório mais recente do COE mostra que 308 yanomamis –ou indígenas de outros subgrupos na região– morreram em 2023. Os dados incluem registros até 30 de novembro. Mais da metade dos óbitos foi de crianças de até 4 anos. Entre as causas principais das mortes estão pneumonia, diarreia, malária e desnutrição.

Os alertas de garimpo apontam uma redução de 80% ao longo do ano, mas as imagens de satélite podem camuflar retornos de invasores a áreas que já estavam abertas. E isso vem ocorrendo, segundo agentes de fiscalização.

A estimativa desses agentes é que cerca de 3 mil invasores permanecem na terra indígena, quase um ano após o início de ações de desintrusão –retirada de não indígenas. Eram cerca de 20 mil no auge da crise, estimulados pelo governo de Jair Bolsonaro (PL).

Com a maior presença de equipes de saúde na região, os números são mais próximos da realidade do que os compilados ao longo do governo Bolsonaro, quando havia expressiva subnotificação. Mas equipes seguem sem entrar em comunidades mais próximas de garimpos, em razão de riscos ao trabalho de saúde.

Na região de Kayanaú, o polo de saúde segue fechado. O garimpo se intensificou no lugar. O governo brasileiro não sabe o destino e as condições de saúde de mais de 300 yanomamis que viviam em cinco aldeias da região.

Vinicius Sassine/Lalo de Almeida/Folhapress/Foto: Lucas Leffa/Secom

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *