As Carrancas do São Francisco

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Algo é bastante comum nas varandas ou em adornamentos e enfeites nas casas dos moradores da região do Submédio São Francisco: Uma arte singular, de forma zooantropomórfica, com dentes vampirescos, juba de leão, olheiras avermelhadas, face de cavalo, com a expressão de careta. E é da careta que seu nome surge: a conhecida e singular carranca do São Francisco. Seu espaço — nos lares, restaurantes e museus — não é o seu local original: a origem desta figura foi nas proas dos barcos que navegavam até a metade do século XX no rio São Francisco, realizando o forte comércio fluvial que abastecia toda a região do Médio e Submédio deste rio brasileiro.

Mas o que podemos saber sobre as carrancas? As carrancas, mesmo com o seu arquétipo singular, é uma figura de proa das pequenas embarcações, no seu contexto mais popular. As figuras de proas, no sentido mais abrangente, apresentam uma temporalidade que remonta as antigas embarcações fenícias, sumérias, egípcias, chinesas e grandes civilizações que floresceram na antiguidade. Heródoto, intitulado como o “pai” da história, refere como pataicos essas figuras presentes nas trirremes egípcias.

Comum também aos famosos navegadores Vikings, que na sua versatilidade chegaram ao norte da américa antes de Colombo (na Vinlândia) acima dos Drakar’s — barcos com figuras de dragões e serpentes na proa — em meados do século XI. As figuras de proa nunca deixaram de existir na história das navegações, mesmo que cada tradição de figuras apontem as crenças e estilos estéticos de cada cultura particular.

A carranca do São Francisco apresenta uma singularidade bastante interessante: O seu arquétipo é único; a sua utilização era em pequenos barcos comerciais (e não em grandes navios marítimos); surgiu como uma tradição exclusivamente são-franciscana.

Assim defende o maior expoente dos estudos das carrancas, o augusto professor Paulo Pardal, e tem sido até então a melhor hipótese sobre a origem destas figuras em virtude de ausência de paralelos no Brasil.

Sua origem, através das fontes escritas e relatos orais, pôde ser norteada entre 1870-1880, final do século XIX, colocado em proa de barcos de comerciantes locais como Miguel italiano ou feitas pelos contemporâneos de Mestre Afrânio.

Um dos mais conhecidos escultores de carrancas, o saudoso Francisco Biquiba Dy Lafuente Guarany, que construiu sua primeira carranca em 1901 afirmava que já havia antecessores nas artes das carrancas, inclusive seu próprio pai. Em 1888, Antônio Alves Câmara e Durval Vieira de Aguiar escrevem as primeiras descrições das carrancas.

É nesta década dos textos de Câmara e Aguiar, reforça Paulo Pardal e Wilson Dias, que as carrancas aparecem com o intuito de propagandear as barcas comerciais nas margens das cidades ribeirinhas, posteriormente ganhando um caráter místico de proteção contra animais selvagens e entidades espirituais e folclóricas.

A carranca, mais que um adorno de barcos ou casas, é um símbolo cultural que leva consigo a identidade de quase um século e meio da cultura ribeirinha. Algo que deve ser preservado compreendido como um patrimônio imensurável do São Francisco.

Eduardo França de Souza – escritor e historiador

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