Plano Real: Lançada no final do governo de Itamar Franco, a moeda garantiu uma estabilidade econômica desconhecida há décadas, mas seus efeitos não são definitivo. Confira texto: Luiz Roberto Serrano Luiz Roberto jornalista e coordenador editorial da Superintendência de Comunicação Social (SCS) da USP.
“Trinta anos é um número meio mágico. Porque a gente comemorou os dez anos, comemorou os 20 anos, comemorou os 25 anos. Mas nunca teve esse impacto, na imprensa, que os 30 anos estão tendo. Isso porque as pessoas por meio da imprensa estão se dando conta de que a estabilidade veio para ficar. Trinta anos de estabilidade. Fernando Henrique foi embora. Veio Lula, veio Dilma, veio Temer, veio Bolsonaro, volta Lula. Mas a inflação parou. A inflação não volta mais.”
São palavras do economista Edmar Bacha, um dos formuladores do Plano Real em entrevista ao jornal Valor Econômico nesta temporada de comemorações dos 30 anos da implantação da moeda que, até agora, impôs um breque à inflação brasileira, depois de décadas de comportamento desembestado. Ela havia batido em 47,4% ao mês e 4.922% em 12 meses, sem que a indexação que corrigia preços e salários gerasse conforto com a situação. Até onde iria esse processo de insegurança e incertezas?
Corria o governo Itamar Franco, em 1993, vice-presidente que sucedera ao imperial Fernando Collor, que do seu pedestal brigara com todos os corpos políticos do País, até vir a vingança do Congresso, via impeachment, alimentada por um prosaico episódio de compra irregular, por parte dele, de um simples veículo da marca Fiat.
Itamar Franco assumiu depois de que dois planos anti-inflacionários de seu antecessor haviam falhado, Collor 1 e 2. Seus dois primeiros ministros da Fazenda, operando em uma conjuntura de alta inflação, não chegaram a um acordo com o presidente sobre o melhor modelo para combatê-la. Itamar gostava das ideias de congelamento de preços, que já haviam fracassado no primeiro Plano Cruzado, nos tempos do governo Sarney. Mas já havia consenso de que elas não funcionavam. E, em maio de 1993, seu então terceiro ministro da Fazenda, Eliseu Resende, foi demitido do cargo, após denúncia do jornal Folha de S. Paulo, de que uma sua viagem a Nova York, naquele momento, havia sido custeada pela Construtora Odebrecht, empresa historicamente participante em grandes projetos governamentais.
Não poderia ter ocorrido situação pior no momento em que o Brasil enfrentava uma inflação descontrolada. Além do país enfrentar uma constante subida de preços, os ministros da Fazenda não paravam no cargo. Diz a história que o, na época, deputado Roberto Freire, ainda ligado ao Partido Comunista, convenceu Itamar Franco a convidar o então ministro das Relações Exteriores, Fernando Henrique Cardoso, a assumir o cargo. A razão? Porque, naquele momento, o crescimento descontrolado da inflação, mais do que um problema econômico, era também político, com forte capacidade de desestabilizar a reconstrução da democracia brasileira, que experimentava seu segundo governo depois do fim da ditadura.
Apesar de surpreso pela escolha, Fernando Henrique Cardoso aceitou o cargo. Ao longo do exercício da nova função, montou uma competente e prestigiada equipe de economistas, com larga experiência na discussão de planos anti-inflacionários, lançou o Plano Real, centrado na moeda denominada real, antecedida pela experiência da URV (Unidade de Referência de Valor), uma fórmula de passagem da velha para a nova, e assim acabou com a permanente disparada de preços que atormentava a economia brasileira havia décadas.
A entrada em vigor do real, que está aí até hoje, se deu em 1° de julho de 1994, há 30 anos, e seu êxito catapultou a campanha de FHC à Presidência da República, cargo que, reeleito depois do primeiro mandato, ocupou até o fim de 2001. A renitente inflação brasileira, na época do lançamento do real, beirava os 4.922% ao ano, como já foi dito.
O Brasil vinha da vivência de inúmeras experiências de combate dessa inflação que exasperava diariamente a população desde os últimos governos da ditadura militar – e já existia antes dela. A série de planos incluiu, em fevereiro de 1986, o Cruzado 1; em novembro do mesmo ano o Cruzado 2; em junho de 1987, o Bresser; em janeiro de 1989, o Verão; em março de 1990, o Collor; em janeiro de 1991, depois o Collor 2, estes últimos já citados. Uma ciranda em que todos fracassaram e a chaga inflacionária, com sua desagradável consequência de enfraquecer o poder aquisitivo da população e fragilizar os governos de plantão, permanecia.
Fernando Henrique Cardoso, intelectual uspiano, sociólogo de renome internacional, cassado pelo golpe militar de 1964, fora eleito como suplente do senador Franco Montoro em 1978. Assumiu o posto em 1982, quando Montoro foi eleito governador de São Paulo. Chegou ao Senado abandonando o hábito de conversar “nós com nós”, ou seja entre os oposicionistas apenas, e ampliou seu relacionamento para com todas as correntes políticas representadas naquela e em outras casas legislativas e centros de poder. Foi reeleito em 1986, com cerca de seis milhões de votos, no momento do auge do funcionamento do Plano Cruzado, quando o seu partido, o PMDB estourou nas eleições em todo o País.
“O Real foi uma construção política. E intelectual. As características e a liderança de Fernando Henrique, que reunia as duas qualidades citadas, foi fundamental para o seu sucesso. Ele exercia uma pedagogia democrática como comunicador, líder político e intelectual”, lembrou o economista Pérsio Arida, membro da equipe de economistas que articulou o plano, em evento comemorativo realizado na Fundação FHC, em São Paulo, na segunda-feira, 24/7.
No esforço de criação e implantação do Plano Real, é significativo ressaltar a importância da equipe de economistas que o formulou e implantou: André Lara Rezende, Pedro Malan, Gustavo Franco, Edmar Bacha, Pérsio Arida, Winston Fritsch, Armínio Fraga, Clóvis Carvalho, ocupando diversos cargos no Ministério da Fazenda e no Banco Central, além de outros membros do governo colocados em diversos posições da administração.
Foi fundamental para a sua implantação o então ministro do Meio Ambiente, o diplomata Rubens Ricupero, que substituiu Fernando Henrique no comando da pasta da Fazenda, quando este último deixou o posto para se candidatar à Presidência da República – uma aposta no sucesso do combate à crônica inflação do País que o catapultou ao Palácio do Planalto, deslocando a candidatura de Luiz Inácio Lula da Silva que, até então, liderava as pesquisas eleitorais para o pleito.
“Não foi uma operação milagrosa em 400 dias, entre a entrada de FHC na Fazenda, em maio de 1993, e o lançamento do Real, em 1° de julho de 1994. Foram 400 dias que funcionaram como um divisor de águas, que marcaram a história do Brasil, mas não representaram uma vitória definitiva contra a inflação”, disse o ex-ministro da Fazenda, Pedro Malan, em evento de entidades empresariais comemorativo dos 30 anos. No mesmo evento, Gustavo Franco, ex-presidente do Banco Central, completou: “Se a gente fosse dizer, em 1994, que em quatro anos íamos trazer a inflação de 2.500% para 1,6%, seríamos recebidos com uma gargalhada. A agenda de consolidação fiscal é complicada em Brasília. O Fernando Henrique foi para nós um milagre”.
Vale lembrar que o presidente Itamar Franco recebia influências de políticos e burocratas próximos a ele que advogavam a adoção de medidas que não funcionaram em planos anteriores, como a conversão dos salários então vigentes pelo pico da inflação do momento, o congelamento dos preços no dia do lançamento do plano e a elevação do salário mínimo para o patamar de cem dólares. Gustavo Franco acompanhou Fernando Henrique em uma reunião às vésperas do lançamento da nova moeda, que reagiu contra essas ideias. A resposta de Fernando Henrique a Itamar, segundo o relato de Franco ao jornal O Globo: “Se é para fazer o Plano Cruzado de novo, não é com a gente. O ministro foi firmíssimo. É para fazer assim? O presidente que sabe, mas então não é comigo, nem conosco. Vamos todos embora.” A reação de Itamar, segundo Franco: “Não, senta aí, retoma a conversa. E aí conseguimos que o presidente assinasse a medida provisória exatamente como nós propusemos”.
Apesar do entusiasmo que provocou na população, o real enfrentou vários percalços ao longo do mandato de Fernando Henrique, como as crises cambiais na Rússia e na Argentina, entre outras, e o forte movimento de queda do valor da moeda brasileira quando o Brasil abandonou o regime de “bandas cambiais”, passando a operar em um regime de “câmbio flutuante”. Itamar Franco, que se elegeu governador de Minas Gerais depois de ser presidente da República, provocou uma crise ao suspender o pagamento da dívida de seu Estado ao Tesouro Nacional, levando à desvalorização do real. Eu estava em férias, na Europa, nesse período, 1999, e o problema rendeu editoriais em jornais como o francês Le Monde e o italiano La Reppublica, sinal de como a situação econômica brasileira era acompanhada no exterior. Uma senhora, vendedora de ingressos no Museu Victoria and Albert, em Londres, queixou-se comigo, ao saber que eu era brasileiro, pois na desvalorização de nossa moeda havia perdido dinheiro em seus modestos investimentos em fundos em nosso país.
Na campanha para as eleições para a Presidência da República, em 2001, na sucessão de Fernando Henrique Cardoso, Luiz Inácio Lula da Silva, candidato do PT, escreveu uma “Carta aos Brasileiros” garantindo que, se eleito, manteria o ambiente econômico construído no governo de seu antecessor. Seu ministro da Fazenda, Antonio Palocci, garantiu essa promessa ao longo de sua permanência no governo. Não foi bem assim com o sucessor de Palocci no cargo, Guido Mantega, nem durante os dois governos de Dilma Rousseff, que patrocinou algumas alterações econômicas que serviram de pretextos exagerados para o seu impeachment por um Congresso com predominância da direita parlamentar.
O fato é que, atravessando vários governos e crises nacionais e internacionais, o real mantém-se há 30 anos, ao contrário de suas moedas anteriores que eram substituídas assim que se perdia o controle sobre o seu valor. Eram soluções fáceis, mas que não persistiam.
Já as curvas de desvalorização do real ao longo do tempo mostram poucos momentos em que ela atingiu 10% ao ano, voando bem abaixo disso desde sua criação. A inflação registrada no País é de 677, 50% desde junho de 1994, quando o real foi lançado há 30 anos. Em junho de 1994, mês anterior ao seu lançamento, havia acumulado 4.922% em 12 meses. Uma diferença quase infinita. Mas, como lembra o ex-ministro Pedro Malan, acima citado, “seus efeitos não são definitivos”. É preciso cuidá-los e preservá-los.
Agencia Brasil