Uma brecha nas regras do Superior Tribunal de Justiça (STJ) sobre viagens de representação institucional pode permitir que os ministros efetuem gastos ilimitados com passagens para o exterior, sem precisar expor publicamente a motivação e o destino da viagem. Para os gastos com deslocamentos nacionais dos magistrados, o teto é de R$ 90 mil por ano. Em ambos os casos, o STJ não divulga as informações dos itinerários já realizados sob o argumento de preservar a segurança dos ministros, o que é contestado por especialistas em transparência pública.
Em nota, a Corte argumentou que “a emissão de passagens e diárias pelo Superior Tribunal de Justiça segue estritamente as previsões legais, as orientações do Conselho Nacional de Justiça e os normativos editados pelo tribunal” e que “a autorização para despesas com viagens é realizada dentro dos valores máximos estabelecidos por esses normativos”.
A resolução do STJ que trata de viagens de representação institucional impõe expressamente o teto de gastos de R$ 90 mil para destinos nacionais, o que inclui deslocamentos para as residências dos ministros, mas nada diz sobre os compromissos fora do Brasil. O texto foi publicado em 2020 e previa um limite de R$ 60 mil, valor que foi corrigido em resolução de 2022 para as cifras atuais.
Questionada sobre se existe um limite para gastos no exterior dos ministros, a assessoria do tribunal informou que “o normativo vigente para viagens internacionais é a Resolução STJ/GP 11/2024″, que não cita um teto de valores.
No portal da transparência mantido pelo STJ só é possível acessar o gasto mensal de cada ministro em viagens nacionais e internacionais em caráter de representação institucional, sem detalhes sobre a motivação do compromisso e a quantidade de trechos emitidos. Não é possível identificar quanto foi gasto para viagens nacionais e quanto foi destinado às internacionais, o que dificulta o acompanhamento público dos gastos. A Corte afirma que “há controle da unidade gestora do STJ” desses custos.
O STJ possui um outro conjunto de regras sobre representação no Brasil e no exterior que define, por exemplo, que as passagens aéreas serão na classe executiva. Contudo, não há, novamente, imposição de teto para as viagens internacionais. A mesma resolução define que “os ministros são obrigados a enviar sucinto relatório escrito das ações desenvolvidas durante a missão oficial”, mas não especifica quem receberá essas informações e não impõe a obrigatoriedade de torná-las públicas.
Em junho deste ano, o ministro Raul Araújo gastou mais de R$ 41 mil com viagens em caráter de representação institucional, mas não foi especificado quanto desse valor foi destinado a compromissos nacionais ou internacionais, nem quais foram os destinos. O ministro utilizou nos primeiros seis meses deste ano R$ 78 mil da cota de R$ 90 mil, mesmo valor utilizado pelo ministro Benedito Gonçalves.
No mês de maio, o ministro Marco Aurélio Bellizze utilizou R$ 30 mil do tribunal com a mesma finalidade. O STJ afirmou em nota que “é comum que, em um único mês, sejam emitidos mais de um bilhete para voos” com o objetivo de acessar o menor preço das tarifas. Porém, a divulgação dos dados pela Corte não detalha a quantidade de passagens emitidas e utilizadas por cada magistrado em cada mês.
O STJ, assim como outros tribunais (ver mais abaixo), cita motivos de segurança para omitir informações de viagens dos ministros a serviço. A Corte afirmou em nota ao Estadão que os magistrados são responsáveis “por julgar processos sensíveis, muitos deles de natureza criminal, sendo relevante resguardar o detalhamento do deslocamento das autoridades no Brasil ou fora dele, mesmo após a realização das viagens”.
O tribunal da cidadania, no entanto, não explicou os riscos envolvidos com a divulgação dos dados após o cumprimento das missões oficiais. “A divulgação dos gastos com viagens é feita de acordo com a legislação brasileira, em especial a Lei de Acesso à Informação”, afirmou o STJ.
Diárias só podem ser consultadas no Siafi
Os repasses aos ministros de diárias internacionais em missão só estão disponíveis no Sistema Integrado de Administração Financeira (Siafi), mantido pelo governo federal, e não pelo Judiciário. O sistema mostra que onze ministros receberam diárias para cumprir atividades no exterior neste ano, mas não é possível identificar a data, o evento e os locais visitados. Em alguns casos, consta na plataforma que o ministro recebeu recursos, mas não diz quanto.
A partir do Siafi é possível identificar, por exemplo, que o ministro Benedito Gonçalves viajou para a Alemanha em março deste ano e recebeu € 5.960, o equivalente a R$ 33.078 na cotação informada pelo STJ, por nove diárias. A plataforma do governo federal também informa que o ministro recebeu € 5.320, ou R$ R$ 30.377, equivalentes a oito diárias na Espanha. Novamente, não há informações sobre as atividades realizadas pelo magistrado na Europa.
O cruzamento das datas das atividades com informações publicadas na internet permitiu identificar que o magistrado participou de um evento da Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados (Enfam). A reportagem entrou em contato com a instituição, mas não obteve retorno até a publicação.
Especialistas criticam omissão de informação
A prática de omissão de informações é recorrente em tribunais superiores. O Supremo Tribunal Federal (STF) e o Tribunal Superior do Trabalho (TST) seguem o mesmo modelo de opacidade dos dados do STJ. O mesmo acontece no Ministério Público. Como revelou o Estadão em maio deste ano, o procurador-geral da República, Paulo Gonet Branco, impõe sigilo de cinco anos às informações sobre passagens e diárias que recebe para viagens de trabalho que já custaram R$ 75 mil.
A alegação dos tribunais superiores e do MP de motivo de segurança para não divulgar os dados se choca com o fato de que as informações só seriam divulgadas após a viagem, quando o suposto risco já teria passado, na avaliação de especialistas.
“Não faz sentido sonegar informações sobre viagens já realizadas sob esse argumento. Uma vez que o deslocamento já ocorreu, eventuais riscos relacionados a ele já acabaram – ao contrário do interesse público sobre os custos, propósito e resultados dessa viagem, que justifica a divulgação completa dessas informações, segundo a LAI [Lei de Acesso à Informação] e o princípio da transparência”, argumentou Marina Atoji, diretora de programas da Transparência Brasil.
Ela avalia que o argumento utilizado pelos tribunais justificaria somente a ocultação de dados específicos cuja divulgação fragilizaria a segurança das autoridades. Atoji cita, por exemplo, que é justificável omitir informações que revelem rotinas e aspectos da vida pessoal dos magistrados, ou que permita a identificação direta dos agentes de segurança que a acompanharam no deslocamento.
“Se as viagens são feitas de acordo com as regras, seriam pouquíssimos dados a serem retidos, sem comprometer a prestação de contas”, afirmou.
Weslley Galzo/Estadão Conteúdo/Foto: Divulgação/Arquivo