A recusa dos Estados Unidos em ajudar o Brasil em seu projeto de submarino nuclear levou o presidente Jair Bolsonaro a pedir apoio de Vladimir Putin, o que foi acertado na sua polêmica viagem de fevereiro a Moscou e agora está em xeque devido à guerra na Ucrânia.
O auxílio com a certificação do combustível a ser usado no reator do submarino levou missões técnicas da Marinha do Brasil a Washington para discutir cooperação. Por volta de 2018, ficou claro que isso não daria em nada.
Segundo um militar com conhecimento das tratativas, os americanos enrolavam os brasileiros e pediam novas informações. O Itamaraty, que participava em conjunto da negociação, resolveu procurar alternativas ante o impacto de cronograma.
A Rússia de Putin, segunda maior potência no campo depois dos EUA, era uma boa candidata, apesar de já estar na mira ocidental devido à anexação da Crimeia, em 2014. Houve conversas iniciais, mas a chegada de Bolsonaro ao poder inicialmente paralisou o processo.
Isso porque o então novo chanceler, Ernesto Araújo, apesar de se dizer antiglobalista como o presidente russo, era um defensor árduo do alinhamento incondicional com Washington. Vetou a associação com Moscou, o que levou o problema de volta à mesa do Ministério da Defesa.
Em 2020, as conversas foram retomadas, com apoio da ala militar do governo. A ejeção de Ernesto da cadeira, ocorrida em março de 2021, acelerou o processo, que teve em Flávio Rocha um de seus motores. Almirante de quatro estrelas da ativa e secretário de Assuntos Estratégicos da Presidência, Rocha foi a Moscou no final de 2021 com a missão de amarrar os pontos de cooperação.
Bolsonaro então foi convidado e aceitou visitar o Kremlin, quando o russo já era acusado abertamente pelo Ocidente de preparar a invasão da Ucrânia —que aconteceu uma semana depois de o brasileiro deixar a Rússia, apesar de gracejos acerca de seu papel em evitar o conflito e a “solidariedade” anunciada a Putin. Ouviu críticas ao Ocidente.
Nada foi citado na viagem sobre a questão dos submarinos, mas o ministro das Minas e Energia, almirante da reserva Bento Albuquerque, confirmou que conversou com a estatal russa de energia atômica Rosatom acerca da participação dela na usina de Angra 3, que o governo quer ver finalizada até 2026. Isso seria a face civil do acerto.
Bolsonaro, contudo, escorregou. Em encontro com empresários depois da visita a Putin, falou brevemente sobre os temas da viagem e citou interesse na área nuclear “por causa da propulsão do nosso submarino”. Ninguém deu muita bola e no dia seguinte o presidente já estava em Budapeste citando lemas fascistas para o premiê “irmão” Viktor Orbán.
A guerra na Ucrânia coloca o arranjo em xeque, pela óbvia pressão internacional contra qualquer tipo de negociação militar com Moscou. O Brasil tem pouquíssimo material russo: opera mísseis antiaéreos portáteis Igla-S e tinha uma esquadrilha de 12 helicópteros de ataque Mi-35, modelo em uso no conflito.
Tinha porque duas semanas antes da guerra, já com a pressão sobre Putin, a Força Aérea decidiu desativá-la. A medida, contudo, estava em discussão há anos: os Mi-35 são caros em sua logística e, operacionalmente, a FAB decidiu que não precisa de um helicóptero de ataque nesse momento.
Não há, até onde se sabe, algum documento oficial ligando o caso do submarino à Rússia. Segundo a reportagem ouviu no Itamaraty, haverá uma tentativa discreta de manter o negócio, mas bastante incerta agora. Nenhuma das partes envolvidas comentou oficialmente o caso.
Para militares, a situação se complica em termos de exposição política, ainda mais com a revelação feita na terça (15) pelo jornal The New York Times acerca de um casal americano que tentou vender para o Brasil segredos militares justamente sobre a operação de submarinos nucleares. O diário diz que eles foram presos a partir de denúncia feita por autoridades brasileiras.
A Marinha do Brasil tem um programa nuclear desde 1979. Apesar de dominar tecnologias vitais como a do ciclo completo do combustível para ser usado em reatores e de ter desde 2009 um programa de construção do submarino movido com esse tipo de energia, a Força enfrenta dificuldades técnicas.
A principal delas tem a ver com a certificação do combustível a ser usado no submarino. Para gerar calor a fim de rodar a turbina do motor da embarcação, é preciso que o urânio combustível tenha um enriquecimento de 20%.
Em usinas como as de Angra 1 e 2, o índice necessário é de 4,25%. Bombas nucleares usam o material a 80%. O chamado enriquecimento é um processo no qual o gás hexafluoreto de urânio, obtido a partir de uma pasta do minério chamada “yellow cake” (bolo amarelo, por sua cor), é girado em ultracentrífugas.
Seus isótopos (átomos de um mesmo elemento, mas com massas diferentes) mais leves, que são usados para fissão nuclear, gerando calor ou explosões ao gosto do cliente, ficam concentrados no centro do equipamento, sendo então transferidos para outras centrífugas. Quanto mais processado, mais enriquecido.
Hoje o Brasil prevê autonomia para alimentar suas usinas nucleares na próxima década, apesar de ter a oitava reserva de urânio no mundo. Envia seu “yellow cakes” a outros países, recebendo de volta as pastilhas feitas a partir da reconversão do gás em pó. Elas são dispostas em hastes para alimentar os reatores.
Há outras questões técnicas. Em 2021, a Marinha começou a testar um motor alimentado por reator nuclear, dentro de um grande cilindro metálico que simula as condições do submarino, uma etapa em que a extensa experiência russa poderia ser útil.
Pelo acordo militar Brasil-França de 2009, além de quatro submarinos convencionais, os franceses têm de integrar o reator brasileiro pronto ao casco da nova embarcação. O negócio foi orçado em € 6,7 bilhões (R$ 37,5 bilhões se fossem em valores atuais).
O projeto como um todo sofreu anemia orçamentária ao longo dos anos, mas em 2021 cumpriu suas metas e desembolsou R$ 482,6 milhões. O atraso é claro: o submarino que deveria chegar ao mar em 2025 não o fará antes do fim da próxima década.
Isso se o fizer, dadas as implicações geopolíticas subjacentes não só ao namoro com os russos. As resistências americanas são perceptíveis também na Agência Internacional de Energia Atômica. O país deverá ser pressionado no órgão da ONU a apresentar salvaguardas sobre as tecnologias, como uma forma de pressionar pela adesão aos chamados Protocolos Adicionais do Tratado de Não Proliferação Nuclear.
Eles preveem regimes duros de inspeções de unidades ligadas a programas nucleares, e o Brasil rejeita há anos sua assinatura por considerar que ela fere sua soberania e coloca em risco segredos industriais de suas ultracentrífugas.
Por Igor Gielow/Folhapress/Foto: Adriano Machado/Reuters/Arquivo