Ao completar um ano de sua instalação, a CPI da Covid ainda não resultou em responsabilização judicial das pessoas indiciadas no relatório final, ao mesmo tempo em que uma parte delas se articula para disputar as eleições. O destino preferencial foi o PL, partido do presidente Jair Bolsonaro.
Na PGR (Procuradoria-Geral da República), encarregada de processar criminalmente o mandatário, ministros de Estado e parlamentares, as conclusões da CPI estão há quase um semestre em fase preliminar de apuração, apesar do volume de dados disponibilizado ao órgão.
Há frentes de trabalho mais avançadas em procuradorias como a do Distrito Federal, com inquérito policial instaurado e pedido de reparação por dano moral coletivo enviado à Justiça, e do Amazonas, onde foi ajuizada uma ação de improbidade sobre a falta de oxigênio em hospitais.
Entre os indiciados pela CPI estão Bolsonaro, o atual ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, e seu antecessor, Eduardo Pazuello, além dos filhos do presidente. Figuram também na lista o ex-ministro da Defesa Walter Braga Netto, parlamentares, empresários e médicos.
Senadores que integraram a comissão criticam o procurador-geral da República, Augusto Aras, pela falta de inquéritos abertos até o momento.
Em novembro, um mês após o término dos trabalhos no Senado, Aras informou ao Supremo Tribunal Federal que avaliaria as conclusões da CPI em dez procedimentos preliminares. No início de fevereiro, sob acusações de complacência, disse que nenhum dos casos estava parado na PGR.
Alegou que seus auxiliares identificaram problemas nos arquivos da comissão, a ponto de “embaraçar” os trabalhos, e que somente em meados daquele mês a questão foi resolvida.
Na sequência, ele pediu aos indiciados que apresentassem defesa prévia. A partir do contraditório, já recebido na maioria dos casos, o chefe do MPF dirá o que deve ser aprofundado ou arquivado.
Embora menos provável, existe a possibilidade de que denúncias já sejam apresentadas. Não há previsão de quando Aras enviará as manifestações ao STF, segundo informou à reportagem sua assessoria.
Para a oposição, porém, o cenário não é promissor. Desde o início da pandemia, o procurador-geral se posicionou perante o Supremo contra dezenas de propostas para que Bolsonaro e alguns de seus principais auxiliares fossem investigados por atos e omissões relacionados à crise sanitária.
Não é comum que ministros da corte contrariem posicionamentos dessa natureza, mas decisões recentes de Alexandre de Moraes e de Rosa Weber foram recebidas como uma importante sinalização de que o tribunal pode refutar eventuais pedidos de arquivamento feitos por Aras.
Contra a vontade do procurador-geral, Moraes mandou abrir inquérito sobre a falsa associação que Bolsonaro fez entre vacinação contra a Covid e Aids durante live na internet. Diligências estão em curso na Polícia Federal. No último dia 6, Moraes prorrogou a apuração por 60 dias.
Na mesma semana, o procurador-geral pediu a Weber para reconsiderar decisão contra o arquivamento de inquérito sobre a suposta prevaricação de Bolsonaro no caso da compra da vacina
indiana Covaxin, negociada pelo governo com a empresa Precisa Medicamentos.
O PGR seguiu o entendimento da Polícia Federal. Em 31 de janeiro, a corporação concluiu não ter identificado crime porque não havia dever funcional do chefe do Executivo de “comunicar eventuais irregularidades de que tenha tido conhecimento” a órgãos de investigação.
A ministra discordou e disse ser “possível extrair, do próprio ordenamento jurídico-constitucional, competência administrativa vinculada a ser exercida pelo chefe de governo”.
Em uma estratégia para aumentar a pressão sobre Aras, integrantes da CPI também entregaram cópia do relatório final a outros setores do Ministério Público Federal.
Na Procuradoria da República no Distrito Federal, por exemplo, o documento foi desmembrado inicialmente em 11 processos, dos quais cinco foram arquivados por duplicidade de apuração em outros casos, segundo informou a assessoria de imprensa do órgão.
Na primeira instância do MPF em Brasília estão em curso atualmente diligências sobre a operadora de saúde Prevent Senior. São apurados, em tese, crimes de perigo para a vida ou saúde de outrem, omissão de notificação de doença e falsidade ideológica.
Outra linha investigativa é dedicada a averiguar irregularidades apontadas pela CPI em contratos firmados entre a empresa VTC Log e o Ministério da Saúde. A procuradora responsável pelo caso solicitou à Polícia Federal instauração de um inquérito policial.
Também sob análise, o impacto da pandemia sobre povos indígenas e quilombolas passou a ser assunto de um procedimento formalizado no último dia 1º.
No caso dos indígenas, o indiciamento proposto pela comissão do Senado contra integrantes do governo Bolsonaro é da competência do Tribunal Penal Internacional, mas a procuradora responsável pelo assunto afirmou que os fatos justificam análise e providências na esfera cível.
O MPF na capital do país enviou para os procuradores do Rio de Janeiro um procedimento que analisa a atuação da Agência Nacional de Saúde Suplementar. Uma apuração sobre a Precisa Medicamentos que estava em São Paulo, por sua vez, foi transferida para o DF no início de março.
Houve uma avaliação de que o caso sobre a disseminação de fake news deve ser conduzido por promotores de Justiça do DF. O entendimento está sob análise. Segundo a CPI, a difusão sistemática do tratamento precoce com medicamentos ineficazes e a estratégia pela busca da imunidade de rebanho produziram risco grave que causou danos irreparáveis à sociedade.
Enquanto os achados da comissão são esmiuçados por diferentes autoridades, alguns dos indiciados encampam projetos políticos. Braga Netto e Pazuello se filiaram ao PL. O ex-titular da Defesa é cotado para compor chapa com Bolsonaro. Pazuello deve disputar vaga na Câmara.
Também acusadas de responsabilidade na crise da Covid, a médica Nise Yamaguchi (Pros) e a servidora pública Mayra Pinheiro (PL), conhecida como Capitã Cloroquina, também fazem planos de se enveredar na política. Querem concorrer, respectivamente, ao Senado e à Câmara.
Toda a exposição com os trabalhos da CPI não abalou a amizade do advogado Marconny de Faria com Renan Bolsonaro.
Apontado como lobista da Precisa Medicamentos e indiciado por organização criminosa, ele participou de recente festa à fantasia em comemoração ao aniversário do filho do presidente. O evento ocorreu em Brasília. Faria estava fantasiado de Drácula.
O advogado ajudou na abertura da Bolsonaro Jr Eventos e Mídia, mostrou a Folha de S.Paulo. Dois dias antes da festa, Renan esteve na PF em Brasília para ser interrogado sobre a companhia e as suspeitas de que defendeu interesses empresariais junto ao governo.
Há outros personagens que, após os holofotes da CPI, preferiram submergir. Protagonista de um caso também revelado pela Folha de S.Paulo, o ex-diretor de Logística do Ministério da Saúde Roberto Dias processa o cabo da PM e lobista Luiz Paulo Dominghetti por crimes contra a honra.
Dias foi acusado pelo militar de cobrar US$ 1 por dose da vacina AstraZeneca. Dominghetti ofereceu ao então representante da administração Bolsonaro 400 milhões de doses do imunizante a serem fornecidas pela Davati Medical Supply, empresa americana que supostamente intermediaria essa compra.
No início do mês passado, a 6ª Vara Criminal de Brasília aceitou a queixa-crime apresentada por Dias e determinou que o policial militar apresentasse sua versão sobre os fatos.
Marcelo Rocha/Folhapress/Foto: Gabriela Biló/Arquivo/Estadão