Planalto sob Bolsonaro escondeu projeções de casos e mortes na pandemia

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Agentes de inteligência do governo Jair Bolsonaro (PL) elaboraram mais de mil relatórios sobre a pandemia, projetando aumento no número de casos e mortes no Brasil, enquanto o ex-presidente boicotava medidas de combate à Covid-19 e o acesso às vacinas.

Mantidos em sigilo durante a gestão passada, os documentos foram produzidos ao menos de março de 2020 a julho de 2021. O material tem folhas com carimbos da Abin (Agência Brasileira de Inteligência), GSI (Gabinete de Segurança Institucional) ou sem identificação de autor.

Os documentos reforçam que Bolsonaro ignorou, além das recomendações do Ministério da Saúde, as informações que eram levantadas por agentes de inteligência e dentro do próprio Palácio do Planalto.

Os agentes da Abin e do GSI citam o distanciamento social e a vacinação como formas efetivas de controlar a doença, mostram estudos que desaconselham o uso da cloroquina e alertam sobre possibilidade de colapso da rede de saúde e funerária no Brasil.

Os relatórios ainda reconhecem falta de transparência do governo Bolsonaro na divulgação dos dados da pandemia, além de lentidão do Ministério da Saúde para definir estratégias de testagem e combate à doença.

A maior parte dos relatórios projeta três cenários de avanço de casos e mortes pela Covid no Brasil, do mais ao menos grave, para cerca de duas semanas seguintes.

Bolsonaro contrariou técnicos da saúde e agentes de inteligência em frases e no comportamento durante a pandemia ao promover aglomerações e desdenhar das recomendações para evitar a propagação do vírus. Em março de 2020, ele disse que a doença “é muito mais fantasia”, “não é isso tudo que a grande mídia propaga”.

Em fevereiro do ano seguinte, afirmou que ainda havia “idiotas que até hoje ficam em casa”. No mês seguinte, quando o Brasil chegou a marca de 320 mil mortos, o mandatário pediu o fim das “frescuras” e do “mimimi” sobre a doença.

De forma geral, as estimativas feitas pela Abin se aproximaram dos dados efetivamente registrados. Em alguns casos, a alta da pandemia superou as expectativas dos agentes de inteligência.

Em 7 de abril de 2021, o Brasil registrou 341.097 mortos, conforme dados do consórcio de veículos de imprensa. A projeção que havia sido feita em 26 de março pelo setor de inteligência era de atingir de 330.216 a 338.558 mortos, no melhor e pior cenário, respectivamente, para esta data.

Durante a pandemia, o GSI era comandado pelo general Augusto Heleno, enquanto a Abin estava sob chefia de Alexandre Ramagem, atual deputado federal pelo PL do Rio. Ambos eram aliados fiéis de Bolsonaro e foram procurados pela reportagem, mas não se manifestaram.

Os ex-ministros Braga Netto (Casa Civil), Eduardo Pazuello (Saúde) também não quiseram comentar os relatórios. O ex-presidente Bolsonaro não se manifestou até a publicação deste texto.

Ao menos 18 relatórios elaborados nos primeiros meses da crise citam risco de “colapso” em diversas regiões do Brasil. Outros 12 documentos de maio de 2020 afirmam que o Brasil não havia atingido o pico da doença.

Documento da Abin de março de 2020 afirmava que “medidas como essas [distanciamento social] podem reduzir o tempo para que a epidemia alcance o pico do número de caos de contágio”.

Esses papéis foram originalmente produzidos para as discussões do comitê chefiado pela Casa Civil sobre as ações do governo durante a pandemia, segundo integrantes da gestão passada. Os documentos não eram apresentados a todo o comitê e chegavam às mãos de assessores de poucos ministros, ainda de acordo com as mesmas autoridades.

Três membros da cúpula do Ministério da Saúde de Bolsonaro disseram que desconheciam os relatórios. Mais de 1.100 arquivos foram disponibilizados à Folha após diversos pedidos baseados na LAI (Lei de Acesso à Informação).

A partir de janeiro, os agentes de inteligência passaram a fazer relatórios sobre a falta de oxigênio no Amazonas, além do risco de a crise se repetir em outras regiões.

À época, Bolsonaro disse que o governo foi “além daquilo que somos obrigados a fazer” na crise do estado. A gestão dele, porém, havia ignorado alertas em série sobre a falta de oxigênio.

Fora da Presidência, Bolsonaro ainda é pressionado por apurações sobre a Covid. O ministro Gilmar Mendes, do STF (Supremo Tribunal Federal), anulou neste mês uma decisão da Justiça Federal que havia arquivado parte de uma investigação sobre irregularidades cometidas pelo ex-presidente na pandemia.

Um documento do setor de inteligência do governo, de 2 de fevereiro de 2021, apontou que ainda não havia informações suficientes para concluir se a variante P.1 da Covid-19 era mais ou menos agressiva. “No entanto, por apresentar maior transmissibilidade, a nova variante aumenta o risco de colapso do sistema de saúde, levando a maior número de óbitos relacionados”, disse o documento.

O mesmo papel cita a vacinação como medida efetiva contra a Covid. “Em um cenário de descontrole da pandemia no país, maior seria a chance de o vírus sofrer mutações em série e, consequentemente, afetar a eficácia das vacinas desenvolvidas”, afirma o relatório que leva carimbo do GSI.

Dias mais tarde, em 11 de fevereiro, Bolsonaro disse que “o cara que entra na pilha da vacina, só a vacina, é um idiota útil. Nós devemos ter várias opções”.

Ao menos oito informes dos primeiros meses da pandemia citam manifestações de entidades científicas e governos estrangeiros desaconselhando o uso da cloroquina ou da hidroxicloroquina.

“Estudos recentes realizados em pacientes com Covid-19 que usaram esses medicamentos identificaram graves distúrbios do ritmo cardíaco, em alguns casos fatais, particularmente se utilizados em dosagens altas ou em associação com o antibiótico azitromicina”, afirma relatório de 23 de abril de 2020.

Apesar dessas análises, Bolsonaro usou o Laboratório do Exército, além do corpo diplomático, para produzir e receber doações estrangeiras dos fármacos, que acabaram encalhados durante a pandemia.

Alguns dos relatórios alertam para o desgaste político da má gestão federal na pandemia. Em documento de 19 de maio de 2020, os agentes afirmam que prováveis falhas no sistema funerário poderiam “acarretar graves consequências sociais, impactando a percepção sobre as ações estatais de enfrentamento à pandemia e, no limite, a própria confiança da população no Estado”.

Em 7 de junho, um “briefing” não assinado diz que a decisão do Ministério da Saúde de esconder dados da Covid-19 “gerou desgaste na imagem do ministério e do governo federal”.

“A consequência desta situação específica é o ministério perder espaço político e controle das informações prestadas e, com isso, há redução na transparência dos dados brasileiros, o que dificultaria a tomada de decisão nos estados e a adoção de ações e políticas para refrear a epidemia no país”, disse o relatório.

O documento ainda citou risco de boicotes internacionais ao país e disse que a Saúde ainda não havia publicado “padrões técnicos” para combate e avaliação da pandemia nos estados e municípios.

À época, Bolsonaro debochou do atraso na divulgação dos dados. “Acabou matéria no Jornal Nacional”, disse ele em 5 de junho de 2021, quando também se referiu à Globo como “TV funerária”.

Os papéis da Abin não foram entregues à CPI da Covid. A comissão chegou a solicitar previsões feitas pelo governo sobre a pandemia, mas recebeu apenas análises da Saúde sobre o cenário do momento.

O governo Bolsonaro negou o acesso à Folha aos documentos da Abin e do GSI durante a pandemia. “Todos os relatórios referentes ao novo coronavírus (Covid-19) são instrumentos de estudo e a sua publicização está resguardada”, afirmou uma das respostas do governo passado.

A gestão Lula chegou a impedir o acesso aos relatórios, mas mudou de postura e passou a apresentar os papéis a partir de maio.

Do início da pandemia até esta quarta (26), eram registrados 704.659 mortes pela Covid e 37.717.062 casos, segundo o Ministério da Saúde.

Mateus Vargas/Folhapress/Foto: Tânia Rego/Arquivo/Agência Brasil

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