Em 2019, completam 30 anos da morte do cantor pernambucano Luiz Gonzaga (Foto: REPRODUÇÃO/INSTAGRAM)
“Não nego meu sangue, não nego meu nome, olho para fome e pergunto: o que há? Eu sou brasilêro, fio do Nordeste, sou cabra da peste, sou do Ceará...”, enarrou Patativa em uma de suas inúmeras produções na pequena Assaré, município da Chapada do Araripe que emprestou seu nome ao poeta popular. Em homenagem ao centenário de Patativa do Assaré e aos nordestinos vivendo ali, a Câmara Municipal de São Paulo criou, em 2009, por meio da lei 14.952, o Dia do Nordestino, celebrado no 8 de outubro.
Dez anos depois, no entanto, o texto da lei que foi revogado pela lei 17.145 e a data acabou sendo alterada para o dia 2 de agosto, sendo este, agora, o Dia do Nordestino na capital paulista. O novo dia marca a morte do cantor e compositor Luiz Gonzaga, falecido a 2 de agosto de 1989. O pernambucano, um dos maiores expoentes da música brasileira, é considerado um dos porta-vozes da cultura nordestina no Sudeste. O 2 de agosto também marca a Semana Nacional da Cultura Nordestina, de maior abrangência, embora esta não seja uma data instituída por força legislativa.
No 8 de outubro de 2009, quando foi comemorado o primeiro Dia do Nordestino, a Câmara de São Paulo homenageou não só Patativa do Assaré, mas também o poeta nordestino Catulo da Paixão Cearense. Catulo é apontado por muitos como um dos mais prolíficos compositores da música nacional, autor de canções como "Luar do Sertão", cantada por Luiz Gonzaga, Chitãozinho & Xororó, entre outros nomes da música nacional.
Natural do Maranhão e filho de pai cearense, o poeta nasceu em 8 de outubro. É justamente o nascimento do Catulo o mais próximo de uma justificativa para a comemoração na data. Apesar de homenagem solene a Patativa, o cearense nasceu em um 5 de março e morreu a 8 de julho.
O fato da certidão de nascimento do Dia do Nordestino estar em São Paulo não é contraditório. A capital paulista recebe, desde o século passado, um intenso fluxo de imigrantes nordestinos. Segundo a Folha de S. Paulo, uma Pesquisa Nacional por Amostras de Domicílio (PNAD) realizada no final da década de 90 apontava que 37% dos nascidos na maior cidade do Brasil tinham pais de origem nordestina - um número superior aos nascidos com pais de origem no estado de São Paulo.
Em 2009, segundo a Câmara Municipal de São Paulo, pelo menos 4 dos 11 milhões de habitantes da cidade tinham descendência de algum estado do Nordeste. O próprio projeto foi proposto pelo então vereador e hoje deputado federal Francisco Chagas (PT), natural de Riachuelo, no Rio Grande do Norte.
No ABC paulista, uma região tradicionalmente industrial na Região Metropolitana, 20% da população são de imigrantes nordestinos. Há em São Paulo o Centro de Tradições Nordestinas (CTN), uma das principais organizações voltadas para difusão e preservação da cultura dos migrantes do Nordeste, fundado em 1991 e prestes a completar 30 anos com mais de 70 mil visitantes mensais, segundo dados da instituição.
Ainda assim, São Paulo não foi a primeira capital a introduzir uma data deste gênero. Em 2005, quatro anos antes, o Rio de Janeiro criou o Dia do Nordestino no 13 de dezembro, data de nascimento de Luiz Gonzaga. A homenagem carioca, no entanto, não recebeu tanta atenção quanto a paulista.
A despeito da alteração no calendário comemorativo, o 8 de outubro parece ter caído no gosto popular e foi bem recebido nos estados do Nordeste, onde costuma ser lembrado pelos governos, Câmaras e empresas, mesmo sem existir oficialmente aqui. Em 2019, quando já havia sido alterada a data, inúmeros usuários das redes sociais, famosos e até parlamentares prestaram homenagens aos nordestinos ou expressaram orgulho de suas origens, como o ator global Lázaro Ramos e o cantor Gilberto Gil.
Neste ano, vários famosos continuam igualmente a celebrar o dia apesar da mudança - que passou despercebida - na cidade berço da data. O ator Silvero Pereira publicou na sua conta pessoal do Twitter, nesta manhã, uma poesia sobre o Dia do Nordestino, e o Governo do Ceará também prestou homenagem nas redes sociais - o que indica uma penetração do 8 de outubro no calendário de comemorações, mesmo sem embasamento oficial, e pode sugerir uma sobrevida à data.
Dia do Nordestino em Fortaleza
Em 12 de novembro 2018, na Capital cearense, o vereador Dr. Portinho propôs uma alteração na lei 9615 de 2010, que instituía a Semana Cultural Bode Ioiô em homenagem ao famoso animal. Com a mudança, a semana do bode, que é comemorada na semana do aniversário de Fortaleza, passaria a ser celebrada junto ao Dia do Nordestino, isto é, o 8 de outubro, como defende o texto do vereador.
No projeto de lei de 2018, a justificativa aponta que o Dia do Nordestino é comemorado nacionalmente no 8 de outubro, embora esta data fosse, na verdade, apenas da cidade de São Paulo. Não há uma legislação federal que crie tal dia no calendário comemorativo nacional. O texto também aponta que o objetivo é dar maior visibilidade ao Dia do Nordestino valendo-se de uma figura folclórica da cultura local - o bode.
O projeto foi encaminhado para Comissão de Constituição e Justiça e Legislação Participativa. O relator, vereador Guilherme Sampaio, apresentou um parecer em dezembro. Foi feito um pedido de vistas ao parecer em março de 2019, e só foi devolvido em agosto do ano passado. A ideia de vincular a semana do Bode Ioiô ao Dia do Nordestino ainda não foi deliberada pela comissão, logo não foi à votação no plenário da Câmara Municipal de Fortaleza
Todavia, a lei de 2018 não cria especificamente em Fortaleza o Dia do Nordestino e, como este mudou de data para 2 de agosto, o 8 de outubro só continua a existir simbolicamente, por força das redes sociais, e em municípios menores como Sorriso, no Mato Grosso, que aprovou uma lei em 2019 inserindo esta data de homenagem aos migrantes do Nordeste no calendário municipal.
Os homenageados e o Dia do Nordestino: uma cultura a celebrar?
A conexão de Catulo e Luiz Gonzaga ao Dia do Nordestino, seja no 8 de outubro ou 2 de agosto, tem algo em comum: as obras destes dois tiveram boa inserção no Sudeste. Gonzaga viveu por anos em São Paulo; Catulo, inclusive, morreu no Rio de Janeiro. Patativa nasceu e morreu em Assaré, mas sua produção tem adentrado, nos últimos anos, nos centros urbanos da região mais rica do País.
Os três, de origens distintas - Maranhão, Ceará e Pernambuco -, são símbolos, no entanto, de um título mais geral: o nordestino. Contudo, é possível falar em uma cultura nordestina? “Uma coisa é a cultura do Nordeste, no singular. Porque tem muitos Nordestes dentro do Nordeste. Outra coisa é falar da cultura do nordestino, porque o nordestino é uma construção histórica, caótica”, pondera o professor de Mestrado da Ciência da Informação na Universidade Federal do Ceará (UFC), Tadeu Feitosa.
“Há uma cultura do modo de falar, do modo de viver, do que se come, do que se veste”, explica o docente, destacando as variações culturais entre os estados nordestinos e dentro destes estados. “Todo lugar, toda cidade, todo bairro, toda região tem um sotaque, uma aparato comportamental, uma produção de símbolos. O termo nordestino é perfeito se atrelado ao Nordeste e à sua cultura, mas ele foi incluído numa leitura que subtrai dele toda essa riqueza e pluralidade que ele tem”.
Isto porque, segundo o professor, a cultura se explica pelo que lhe é exterior. Assim como o bem se explica pelo mal, ou o bonito se explica pelo feio, traços culturais são identificados ou explicados ao serem postos em comparação. O problema é que estas percepções, muitas vezes, geram os discursos “preferenciais”, maneiras mais econômicas, mais simples de explicar algo. Daí nascem, por exemplo, os estereótipos, que “resumem” aquela cultura.
Datas como o Dia do Nordestino cumprem uma função simbólica, um rito de calendário, muitas vezes aproveitada nestes discursos preferenciais. Mas também acabam disputadas em ressignificações políticas, o que explica muitos nordestinos terem adotado o 8 de outubro como um dia para expressar seu orgulho nas redes sociais, ainda que a data tenha sido criada em outra região.
“O ato de dizer ‘eu sou’, com o sotaque que se tem, é um ato político. Uma das características da cultura é a demarcação de fronteiras. Ratificar nossa marca simbólica, na música, nos discursos, isso é demarcação política, posicionamento político. Essa demarcação é salutar e é o próprio sangue do que chamamos de cultura”, diz o professor Tadeu Feitosa. Uma manifestação saudável, distinta de um discurso preferencial supõe um nordestino único, viciado em estereótipos, sem sua pluralidade e complexidade. “Como dizia Patativa do Assaré, ‘nordestino sim, nordestinado não’. E eu acompanho ele”, finaliza.
Fonte: www.opovo.com.br