A vacina anti-Covid da Janssen seria excelente para o Brasil: dose única, refrigeração usual, 66% eficaz contra casos moderados e graves, estudo de fase 3 feito no país, entre as mais baratas do mercado. Nem os voluntários brasileiros do teste clínico Ensemble, porém, sabem se e quando poderão contar com ela.
A subsidiária da Johnson & Johnson anunciou os dados de eficácia há mais de três semanas, em 29 de janeiro, 12 dias depois de iniciada a vacinação por aqui com a Coronavac. Como a maioria dos cerca de 7.000 voluntários brasileiros já têm direito a imunizar-se, por serem profissionais de saúde, eles precisam saber se receberam a vacina ou placebo.
A Janssen não abriu ainda o duplo cego para todos os voluntários, ou seja, não informa quem tomou o quê. Pessoas que contribuíram com seu tempo para o estudo, com risco ainda que mínimo de reações adversas, mas que tenham recebido placebo, têm em princípio direito a ser vacinadas pelo patrocinador.
"Desde que foi publicado o resultado internacional do estudo nos Estados Unidos, que inclui o Brasil, a vacinação do grupo placebo se coloca, e principalmente a quebra da questão do cegamento. Muitos participantes estão sendo chamados para tomar outra vacina e não sabem se estão vacinados ou não", diz o médico Jorge Venâncio, coordenador da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep).
Esclarecimento: este repórter é parte interessada, tendo participado do teste que foi conduzido no Hospital Sírio-Libanês de São Paulo. Por outro lado, aos 63 anos, não integra nenhum grupo no alto da escala de prioridade para vacinação no SUS. No Sírio, voluntários recebem informação de que a abertura do grupo placebo deve acontecer em março, sem indicação de prazo.
A Folha precisou esperar uma semana para obter posição oficial da Janssen a respeito, e ela não foi esclarecedora. Após vários prazos descumpridos, a empresa se limitou a dizer, por assessoria de imprensa, que aguarda autorização da vacina por ao menos uma autoridade reguladora independente antes de resolver a questão do grupo placebo.
"Se a vacina da Janssen contra a Covid-19 estiver autorizada, será preparada uma emenda ao protocolo do estudo clínico descrevendo de que forma os participantes no braço do placebo receberão a vacina da Janssen contra a Covid-19. A emenda do protocolo da pesquisa precisa passar pelos processos de aprovação das autoridades regulatórias locais", informou.
"O tempo para essa autorização pode variar nos diferentes países, de acordo com cada processo de aprovação."
O pedido para uso emergencial foi apresentado nos EUA, no último dia 4, mas não no Brasil. Os dados submetidos pela Janssen serão debatidos pela FDA (agência americana de fármacos) na próxima sexta-feira (26). A farmacêutica diz que só fará solicitação equivalente à Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) após aprovação pela FDA.
Na página de acompanhamento da Anvisa sobre licenciamento de vacinas, a da Janssen aparece com 22% de documentação com análise concluída. Outros 49% aguardam complementação, e 29% dos dados requisitados nem foram submetidos. A empresa diz manter "conversas" com Anvisa e Ministério da Saúde, mas não se está em negociação de fornecimento ao Brasil.
A Janssen tem compromisso com o governo americano de fornecer 100 milhões de doses até junho, com opção para compra de mais 200 milhões. A Casa Branca deu US$ 1 bilhão (R$ 5,5 bilhões) ao laboratório para desenvolver a vacina. O Brasil não é prioridade.
Segundo Venâncio, da Conep, houve várias reuniões com pesquisadores dos centros envolvidos para providenciar imediatamente a quebra do cegamento, já autorizada em princípio pela comissão. "O que eu entendi é que a Janssen está aguardando a aprovação pela FDA para fazer a vacinação, coisa que imagino seja questão de poucos dias", diz.
"Aguardar alguns dias para vacinação do braço placebo não é exatamente o ideal, mas não chega a ser uma coisa que faria diferença gigantesca. Agora, a quebra do cegamento tem de ser imediata, não tem lógica retardar, porque as pessoas estão sendo chamadas para tomar outra vacina, e elas vão acabar tomando e saindo da pesquisa."
Isso prejudicaria não só o participante como a própria pesquisa, porque vai haver uma debandada, segundo o coordenador da Conep. A partir daí não caberia medir mais a imunogenicidade, por exemplo, porque não haveria como saber de qual vacina seria o efeito.
Consultada sobre a posição da Conep, a Janssen disse que o protocolo original da pesquisa previa a abertura do cegamento só no término do estudo e que sua modificação teria de ser submetida à Conep e à Anvisa. Segundo a Anvisa, entretanto, essa submissão independe de autorização para uso emergencial:
"O pedido de uso emergencial no Brasil não depende da aprovação em outros países. Como a Janssen tem pesquisa sendo conduzida no Brasil o eventual pedido de uso emergencial seria analisado em até dez dias."
Em duas páginas de informações datadas de 18 de janeiro entregues aos participantes (no meu caso, durante entrevista presencial em 12 defevereiro, o 72º dia após tomar a injeção), os voluntários que já podem ser vacinados foram orientados a procurar a equipe de pesquisa para "discutir opções", o que "pode incluir a quebra do caráter cego".
"Se houver a quebra do caráter cego e soubermos que você recebeu placebo, será aconselhado que você receba a vacina autorizada" (ou seja, do SUS), diz a orientação. Em casos como o deste repórter, no entanto, essa opção ainda não existe, nem há como saber quando se materializará, pois o estoque garantido pelo governo federal mal dá para o primeiro grupo prioritário.
Resta o consolo de ter contribuído para o avanço da ciência e o desenvolvimento de uma vacina que tão cedo não vai beneficiar ninguém além da população dos EUA.
por Marcelo Leite | Folhapress/Foto: Divulgação